A participação de 50,06% que a Marfrig tem na BRF vale hoje cerca de R$ 15 bilhões — enquanto a companhia de Marcos Molina inteira negocia a apenas R$ 10 bilhões na Bolsa.
A conta de padeiro pode dar a impressão de que a Marfrig é a pechincha do ano — com o mercado deixando de precificar todos os outros negócios da empresa, incluindo sua operação nos Estados Unidos, que faz mais de US$ 12 bilhões de receita por ano e um EBITDA de US$ 500 milhões.
Mas as coisas não são exatamente o que parecem.
“Tem uma pegadinha nessa conta que é você não considerar a dívida, que é muito alta e nos deixa bem menos confortáveis com a empresa,” disse Leonardo Alencar, o analista da XP que tem uma recomendação ‘neutra’ no papel.
“Além disso, a empresa está passando por um ciclo bovino muito ruim nos Estados Unidos, que ninguém tem clareza de quando exatamente vai virar.”
A Marfrig tem uma dívida líquida de R$ 34 bilhões, com uma alavancagem de 3,7x EBITDA no final do quarto trimestre. Essa alavancagem, no entanto, deve diminuir com a venda de 16 fábricas na América do Sul para a Minerva — uma operação fechada em agosto, mas que ainda aguarda a aprovação do CADE.
A transação vai injetar R$ 6 bilhões no caixa da companhia e já reduziria a alavancagem para cerca de 3x EBITDA, nas contas da própria empresa.
No Bank of America, a analista Isabella Simonato tem uma visão mais construtiva e um ‘buy’ no papel, argumentando que a ação está descontada, tanto na conta de múltiplos quanto na ‘soma das partes’.
Num relatório recente, a analista calculou que o desconto na ‘soma das partes’ é de cerca de 40% hoje, em comparação a uma média histórica de 8% desde maio de 2022, quando a Marfrig começou a consolidar a BRF em seu balanço.
Já em termos de múltiplos, o BofA calcula que a Marfrig negocia a 3,8x EV/EBITDA deste ano, em comparação a 5-6x de seus peers.
“A conclusão da transação com a Minerva vai ser crucial para o ‘equity story’ da Marfrig. Ainda que a ação não esteja sequer refletindo a participação da companhia na BRF, acreditamos que a desalavancagem é um driver fundamental para o desconto da ‘soma das partes’ reduzir,” escreveu Isabella.
O principal problema da Marfrig hoje tem nome e sobrenome: National Beef.
A empresa americana responde por quase metade da receita da Marfrig (mesmo considerando os números da BRF consolidados no balanço) e tem sofrido com uma conjuntura desfavorável de mercado.
Com a redução da oferta de boi nos últimos anos, o preço do gado está muito alto nos EUA, o que tem pressionado os custos da companhia, comprimindo sua margem EBITDA para esqueléticos 2,6% no quarto tri.
Na JBS USA – que opera no mesmo ramo – a situação é ainda pior, com a operação fechando o quarto tri com margem EBITDA negativa. (A diferença entre as duas é que a Marfrig opera numa região dos EUA que está melhor, além de focar em produtos mais premium, que têm sofrido menos).
“Estruturalmente, a margem da National Beef deveria ser uns 2 pontos acima da JBS e da Tyson por esses fatores,” disse um analista do buyside. “Mas a JBS errou alguns hedges e teve uma performance ruim no trimestre, com esse gap aumentando para mais de 4 pontos.”
No mercado, a grande dúvida é quando a virada do ciclo vai acontecer nos EUA.
A maioria dos analistas acredita que o ciclo bovino lá começará a melhorar em 2026 – mas alguns já acham que essa projeção pode ser muito otimista.
“Em 2023 os produtores americanos já deveriam ter começado a reter os animais, mas o clima não foi favorável para reter as fêmeas e o custo dos grãos também estava alto,” disse Leonardo, da XP. “Se eles demorarem muito mais para começar a reter as fêmeas isso vai significar que a virada do ciclo pode demorar mais que o esperado.”
Para aumentar a oferta de gado, os produtores precisam reter as fêmeas, para que elas engravidem e aumentem o rebanho – um processo que leva em torno de dois anos para gerar um impacto efetivo na oferta.
“Se eles começarem a reter agora, só vamos ver o efeito em 2026. Mas se esse processo de retenção atrasar, pode ser que a virada do ciclo fique para 2027,” disse o analista.
Essa dinâmica do mercado também significa que as coisas devem piorar antes de começar a melhorar – já que com a retenção das fêmeas a oferta diminui momentaneamente, pressionando mais os preços.
“O pior momento da indústria deve ser em 2024 e 2025, com o preço da arroba subindo ainda mais,” disse o analista do buyside. “Parte disso eles conseguem repassar no preço, mas deve ter uma compressão de margem e uma piora na geração de caixa.”
Na América do Sul, o cenário da Marfrig é o oposto, com o ciclo bovino jogando a favor da companhia, com uma oferta alta, preços baixos e uma demanda forte por carne.
A expectativa de analistas é que o bom momento, especialmente do Brasil, continue ao longo deste ano, e comece a perder força em 2025.
O problema é que essa operação deve diminuir muito de tamanho com a venda das 16 fábricas de carne in natura da Marfrig para a Minerva. Não está claro exatamente quanto essas fábricas representam do EBITDA da companhia – já que a Marfrig e a Minerva deram números diferentes em suas apresentações – mas deve ser algo entre R$ 800 milhões e R$ 1,5 bi.
No total, a operação da Marfrig na América do Sul fez um EBITDA de R$ 2,3 bilhões no ano passado.
Na BRF, a situação também é favorável, com a companhia surfando duas tendências positivas: a macro, com o preço dos grãos em baixa e as margens de frango em alta, e a micro, com a companhia colhendo os frutos de ganhos de eficiência provenientes de mudanças internas.
“Era uma empresa que antes queimava caixa e que tinha que chamar capital uma vez por ano pelo menos. Agora, dado o nível de resultado e geração de caixa, ela pode até começar a distribuir dividendos,” disse um analista.
Para este analista, dada essa dinâmica, é melhor comprar a BRF diretamente do que se expor à empresa via Marfrig.
“Com a Marfrig você vai surfar a melhora da BRF, talvez pagando um múltiplo menor, mas vai surfar também todo o ciclo ruim dos Estados Unidos, que ninguém sabe exatamente quando vai acabar.”