Os técnicos da consultoria americana Tropical Research Service (TRS) visitam regularmente fazendas de cacau na África, no Equador e Brasil em busca de dados primários.
Com prancheta na mão, eles contam o número de árvores e de frutos, analisam a saúde das plantações e estimam a quantidade de amêndoas de cacau que estará disponível nas principais regiões produtoras.
Em um momento em que propriedades agrícolas que cultivam diferentes produtos em diferentes cantos do mundo se beneficiam da agricultura de precisão e da inteligência artificial para colher mais e melhor, grande parte das fazendas de cacau são lavouras arcaicas.
“O cacau é uma cultura que ainda está no século 19. É uma agricultura camponesa, que não é sofisticada. Na África Ocidental, os padrões de manejo são muito baixos,” Steve Wateridge, o fundador e chefe de pesquisa da TRS, disse ao Brazil Journal.
Considerado um dos principais especialistas em cacau no mundo, Wateridge diz que os relatos recentes de seus técnicos mostram a gravidade da situação na África – o que não tem nada a ver com questões climáticas, como muita gente tem dito.
A quebra na safra de cacau na Costa do Marfim e em Gana – os dois maiores produtores mundiais, respondendo por 70% das amêndoas que chegam ao mercado – é resultado da infestação dos cacaueiros pelo swollen shoot virus, uma praga que causa um inchamento anormal das brotações, reduz a produtividade da lavoura e pode levar à morte da planta.
A praga não existe no Brasil, mas já dizimou colheitas em outros lugares. Nos anos 60 e 70, quebrou pela metade a produção de Gana, quando o país era o maior produtor mundial de cacau.
Os ganenses tentam controlar o surto atual, mas a Costa do Marfim não está fazendo nada, o que causou uma queda na oferta de 500 mil toneladas originadas nos países africanos. Por lá, a falta de matéria-prima já paralisou a operação de processadores.
A situação do cacau na África é o ápice do terceiro ano em que os estoques globais estão em baixa – e aparentemente um quarto está a caminho – o que levou à disparada no preço da commodity.
Desde janeiro, o preço do cacau subiu mais de 130%. O contrato futuro em Nova York com entrega prevista para maio atingiu o patamar inédito de US$ 10 mil por tonelada, e segue nas alturas.
Isso impactou diretamente os traders de cacau que tinham posições compradas no mercado físico (e, em geral, assumem posições opostas no financeiro, na expectativa de que um compense o outro).
O problema é que o hedge assumido meses atrás não contemplava nem de longe o atual preço de tela. Além disso, as entregas físicas têm sido postergadas pela simples inexistência de estoque e os contratos têm sido rolados, ampliando os custos com chamadas de margem.
“A mensagem é clara: se alguém estiver sob pressão financeira, o melhor é encerrar a posição,” diz Wateridge. “Agora, se as perdas incorridas por alguma empresa foram grandes demais, presumo que vamos descobrir com o tempo.”
Wateridge diz que os fundos de hedge não causaram o problema. “Os fundos tiveram uma posição comprada muito consistente. Eles foram os principais vendedores nos últimos três meses porque, à medida que o preço subia, eles liquidavam a posição. O problema do cacau envolve questões estruturais de longo prazo.”
No Brasil, o fator clima – com o El Niño – reduziu a produção da safra 2023/24 em 15% em relação à safra anterior, num momento em que o País vem aumentando o consumo ano após ano.
Antes mesmo da cotação recorde em Nova York, a suíça Barry Callebaut, a maior processadora de chocolates no mundo, já havia comunicado seus clientes no Brasil que aumentaria o preço de seus chocolates esta semana em até 23%; nas coberturas e decorações, a alta é de até 17%.
O comunicado da companhia diz que, sem vislumbrar uma depreciação ou redução no preço do cacau nos próximos 9 a 12 meses, “estabeleceremos um aumento de preços dos nossos produtos de forma gradual e faseada” – indicando que novos reajustes estão por vir.
A indústria de chocolate no País assiste em choque a escalada do preço da amêndoa.
“Uma parte do aumento será repassada ao preço, mas teremos que repensar embalagens, produtos e processos. Não vamos abrir mão da qualidade, mas momentos como esse exigem reavaliar tudo, como se fosse um orçamento base zero,” diz Daniel Roque, vice-presidente da Cacau Show.
Uma das medidas da empresa para ganhar eficiência é o aumento da automação na linha de produção. A Cacau Show está reconstruindo parte da fábrica de Linhares, atingida por um incêndio de grandes proporções em novembro, e colocará máquinas ainda mais potentes na operação.
“Pequenos fabricantes estão em risco em função das cotações no mercado internacional que são insustentáveis e refletem um momento especulativo,” diz Bruno Lasevicius, o fundador da marca que leva seu sobrenome e presidente da Associação Bean to Bar, que reúne as empresas que usam amêndoa integral (e não apenas derivados de cacau) no processo produtivo. “Mas esse momento também é uma oportunidade para reavaliar toda a cadeia do cacau.”
No Brasil, a explosão dos preços se soma a uma longa história de baixo investimento na renovação das lavouras de cacau e de baixa remuneração dos produtores, o que levou ao envelhecimento das lavouras e à redução da produtividade e da qualidade dos frutos.
Nos últimos 50 anos, os preços do cacau na bolsa de Nova York ficaram em média ao redor de US$ 2 mil/tonelada.
Dois anos atrás, quando o preço de tela estava em linha com a média histórica, os produtores do sul da Bahia recebiam cerca de R$ 12,60 por quilo.
“Esse valor é muito pouco atrativo,” diz Estevan Sartoreli, co-fundador e co-CEO da Dengo, que foca em chocolates premium.
“Alguém sempre paga a conta do chocolate baratinho: o produtor que recebe pouco por seu cacau, o consumidor que compra produtores de pior qualidade ou o planeta que sofre com o impacto ambiental.”
Em 2023, os produtores que fornecem para a Dengo receberam em média R$ 36,34 por quilo, mais que o dobro do valor pago pelo mercado. O prêmio recebido vem aumentando ano após ano em função da maior oferta de cacau orgânico, da melhoria no processo de fermentação das sementes e da adoção de critérios ESG por parte dos produtores.
Mas os agricultores que vendem para a Dengo e outros fabricantes de alto valor agregado são uma minoria. Cerca de 90% dos produtores têm propriedades com menos de cinco hectares e sua renda não passa de um salário mínimo mensal.
“O cacau precisa remunerar melhor quem produz. Espero que o preço não volte aos patamares de 2022,” diz Sartoreli.
Agora, os preços nas alturas têm animado produtores e cooperativas a investir em tecnologia; hoje, apenas uma minoria deles tem lavouras mecanizadas e investe de forma consistente em fertilização e agroquímicos.
Quase dizimado no final dos anos 80 pela praga conhecida como vassoura de bruxa, o setor cacaueiro nunca conseguiu voltar ao auge. O País produz cerca de 230 mil toneladas da amêndoa por ano, metade do que fazia antes da chegada da praga, hoje controlada.
Naquela época o Brasil era o segundo maior produtor do mundo. Agora é o sétimo, e de exportador virou importador.
Para um produto ser considerado chocolate no Brasil, ele tem que ter pelo menos 25% de cacau na composição. Fabricantes menos zelosos com a qualidade já incluíam altas doses de açúcar e gordura hidrogenada em suas formulações. Com os preços do cacau nas alturas, a “criatividade” deve correr solta.
Logo, é quase certo que o desequilíbrio atual seja compensado por uma queda global do consumo. Wateridge, da TRS, lembra que a última vez que ocorreu algo parecido foi em 1977, quando os preços atingiram um pico de US$ 5 mil por tonelada, que foi o recorde até fevereiro deste ano (se aplicada a inflação americana no período, o valor atual equivaleria a US$ 25 mil).
“Naquela época, houve uma destruição da demanda. Se vamos ter agora uma demanda suficiente a US$ 10 mil ou mais, acho que só descobriremos nos próximos 12 a 18 meses,” diz Wateridge.
Moral da história: desconfie do bombonzinho baratinho. Ele pode ter de tudo, menos chocolate.