VENEZA – Se esta 60ª Bienal de Veneza entrar para a história, é porque seu grande feito (e ineditismo) foi trazer para o centro da narrativa, de forma estruturada, excelentes artistas que não fazem parte do cânone e são desconhecidos do grande público.
Talvez seja mais uma evidência de sucesso o fato de que a maior crítica à mostra seja a falta de uma provocação mais contundente sobre as mazelas que o mundo vive, a falta de um “soco no estômago” que deixaria o visitante entre um suspiro e a perda completa do ar.
Mas uma exposição incômoda não seria o estilo de Adriano Pedrosa, o diretor artístico do MASP e curador desta edição da Bienal, cujo histórico é de montagens elegantes, racionais e bem estudadas.
A mostra – que abriu para convidados e imprensa na terça-feira passada – traz 330 artistas em 88 pavilhões nacionais distribuídos por duas áreas, o circunspecto Arsenale (o antigo estaleiro militar, central na expansão do império veneziano) e o Giardini (um jardim criado por Napoleão Bonaparte em 1807). Isso sem falar nas diversas exposições paralelas pela cidade.
Com o título Stranieri Ovunque – italiano para “Estrangeiros por toda parte” – esta é a primeira bienal curada por um latino-americano. Na empreitada, Pedrosa contou com a assistência curatorial de Amanda Carneiro e Sofia Gotti.
O termo “estrangeiro” tem vários significados no contexto da mostra: além do emigrante, o exilado, o expatriado, inclui também o diferente, o estranho, o excluído.
Numa intensidade nunca vista, os povos indígenas e artistas autodidatas — historicamente excluídos da história oficial das artes – estão no centro desta Bienal.
Para começar, a fachada do prédio do Giardini foi inteiramente pintada pelo movimento de artistas indígenas brasileiros Huni Kuin – o Mahku (veja na foto acima, de Rafa Jacinto). Destaque da última Bienal de São Paulo e de uma exposição individual no MASP em 2023, o Mahku é um coletivo que busca preservar os cânticos e rituais da sua tribo por meio de pinturas.
Como premissa curatorial, Pedrosa escolheu artistas oriundos do chamado “Sul Global” (basicamente, os países em desenvolvimento da América Latina, África e Oceania). Nunca uma Bienal teve tantos artistas africanos e indígenas, a maioria participando pela primeira vez de um grande evento internacional, e muitos deles representados por galerias pequenas e locais.
A cena social em Veneza durante a Bienal é um capítulo à parte — o que, este ano, inclui os brasileiros.
O MASP e Bienal de São Paulo trouxeram mais de 150 conselheiros e patronos para comemorar a curadoria de Pedrosa, o ponto máximo de sua carreira.
Regada a Bellinis e muito Aperol, a maratona de aberturas, visitas guiadas, cafés da manhã, almoços e jantares terminou na sexta-feira. Ontem, a Bienal abriu oficialmente ao público até terminar em 24 de novembro.
A Bienal de Pedrosa tem muitas referências a projetos seus anteriores, como a Bienal de São Paulo de 1988, dedicada à Antropofagia, quando foi curador assistente de Paulo Herkenhoff. A polêmica exposição só de estrangeiros do Panorama do MAM de São Paulo, de 2009, e das Histórias Indígenas e LGBTQIAP+ do MASP, ambas curadas por ele.
A curadoria distribuiu as obras entre as salas da Arsenale e do Giardini, com núcleos contemporâneos e núcleos históricos.
Três salas do núcleo histórico estão espetaculares: a de retratos, a de abstrações e a última, da diáspora artística italiana no século XX.
Nesta sala, o ponto alto de todo o Arsenale, os cavaletes de cristal idealizados por Lina Bo Bardi para o MASP sustentam obras de artistas italianos que emigraram para diferentes partes do mundo. O impacto dos cavaletes e das obras no público foi enorme.
As salas de brasileiros como Anna Maria Maiolino e Beatriz Milhazes, e as pinturas novas de Dalton Paula, são outro ponto alto. Dentre os artistas internacionais que vale acompanhar estão Taylor Nkomo, Cláudia Alarcon, Anna Zemankova, Isaac Chong Wai, Miguel Ángel Rojas, Greta Schödl, Santiago Yahuarcani, Salman Toor, Omar Mismar, Pacida Abad, Kang Seung Lee e Nour Jaoda.
Os pavilhões nacionais mais aclamados tinham filas imensas, como o da Alemanha, Espanha, França, Japão e Inglaterra.
Algumas pessoas esperaram mais de duas horas para assistir à performance no pavilhão alemão, talvez o mais falado da mostra. A curadora misturou vídeo, teatro, performance e arte apocalíptica.
Tão falado quanto, embora o menos visitado de todos, foi o Pavilhão do Vaticano, que nesta edição acontece dentro de uma prisão feminina ativa, na ilha de Giudecca. Com meus olhos traz cinco artistas, entre eles a brasileira Sonia Gomes. Por ser uma prisão em funcionamento, são poucas visitas permitidas por dia.
O Papa Francisco visitará a exposição no próximo dia 28 – o primeiro Pontífice a ir a uma Bienal em mais de 100 anos — e se encontrará com Pedrosa.
O Pavilhão do Brasil foi renomeado Pavilhão Hãhãwpuá durante o período da visitação, simbolizando o país como território indígena, com título de Ka’a Pûera: Nós Somos Pássaros que Andam. Na abertura, a presidente da Bienal de São Paulo, Andrea Pinheiro, discursou juntamente com a presidente da Funarte, Maria Marighella, e o embaixador Renato Mosca. Vencedora do Prêmio PIPA 2023, Glicéria Tupinambá lidera a representação do Brasil, levando o Manto Tupinambá.
Passear pelo Arsenale e pelo Giardini é uma pausa na programação normal de um mundo desigual, em guerra(s) e profundamente polarizado – problemas que infelizmente não serão resolvidos nas paredes do Arsenale de Veneza.