O corpo decai e apodrece; a mente anseia e resiste. Por que não dar ao universo mental de cada pessoa uma existência emancipada, livre das carências e vulnerabilidades do corpo em que está imbricado?
O impulso arcaico de alcançar a imortalidade em vida encontrou no movimento transumanista — uma corrente tecnocientífica nascida na Califórnia nos anos 1980 e regiamente financiada por multibilionários do Silicon Valley — uma pitoresca manifestação.
O alvo maior do movimento é nada menos que transcender as limitações da vida biológica-corporal, com ênfase no doloroso enigma da morte, por meio do uso do mais avançado arsenal tecnocientífico: inteligência artificial (IA), medicina regenerativa, nanomedicina, terapia genética, ferramentas CRISPR (edição genômica), manipulação de células-tronco e o que mais for o caso.
Uma das principais apostas desse programa de pesquisa é o “mind uploading”: a ideia de converter consciências e personalidades humanas em programas de AI aptos a ser armazenados no ciberespaço ou “carregados” em máquinas ou clones.
A digitalização dos conteúdos do cérebro — nossas memórias e desejos, pensamentos e afetos, sonhos e medos, a sensação de ser quem se é — e sua transferência para um artefato cibernético garantiriam a perpetuação da nossa consciência e vida mental para além da frágil e efêmera corporalidade em que nos foi dado existir — a imortalidigitalização.
Levada ao extremo, a utopia transumanista considera bem-vinda a substituição dos seres humanos com seus corpos pré-históricos herdados do passado evolutivo por máquinas inteligentes. O “mind uploading” em supercomputadores faria da AI o próximo passo da evolução. Pâncreas, unhas, hipófise? A proposta do transumanismo, em suma, é deixar o Homo sapiens para trás.
É impossível prever até onde se pode chegar na busca de um sucedâneo tecnológico para a imortalidade da alma. Como escreveu Marx no Capital: “A tecnologia moderna pode exclamar com Mirabeau: Impossible! ne me dites jamais ce bête de mot!” [“Impossível! nunca me diga essa palavra ridícula!”]. Um entusiasta do transumanismo não diria melhor.
Mas será minimamente plausível imaginar que no futuro, em alguns séculos ou milênios talvez, nossos descendentes terão se transformado — evoluído? — em seres incorpóreos ou entes eletrônicos a pairar no ciberespaço pela eternidade?
A fantasia transumanista parte da premissa de que os seres humanos são o problema ao passo que a tecnologia é a solução.
O reducionismo implícito na proposta salta aos olhos e raia as bordas do desvario: as pessoas não passam de máquinas (anacrônicas e imperfeitas) de processamento de dados e todo o universo mental de cada um pode ser replicado em algumas linhas de programação.
Ao se carregar o “eu digital” na nuvem, porém, o que restaria da pessoa que o originou? De que modo seriam traduzidos e preservados em código-fonte os seus vínculos de amor e amizade; o fluxo sensório; o calor do sol na pele; a delícia de um banho de mar; o olhar apaixonado e tudo, enfim, que significa estar vivo entre os vivos? A sensação de ser quem se é.
E sem esquecer, é claro, que os artefatos tecnológicos, por mais sofisticados, estão no mundo físico e, portanto, vulneráveis a bugs, hackers, apagões e colapsos imprevistos. A alma digitalizada (ou o que restar dela) passaria a existir, como a cristã, fora do corpo; porém, ao contrário desta, seria apenas potencialmente imortal.
“O homem que vive para o corpo está morto,” pontificou o poeta Edward Young, precursor inglês do romantismo, em Night thoughts (1742). Os tempos, porém, são outros. E a réplica digital de uma consciência incorpórea em rede com seus pares no ciberespaço – estará viva?
As miragens e falsas promessas do tecnossolucionismo — a crença de que existe uma resposta tecnológica para tudo — têm sido uma nota constante, quase uma obsessão da nossa era.
O transumanismo californiano pertence à família das fantasias de absoluto controle e assenhoreamento da natureza que não raro redundam, como a crise climática em curso, em temíveis e ameaçadoras formas de descontrole.
O enredo é conhecido. No salto tecnocientífico que se avizinha, a aurora de um “novo tempo”; o novo “paradigma”; a promessa digna de fé e o passaporte da ansiada redenção. O futuro digital e a AI aí estão. Será diferente desta vez? Com esperanças assim, quem precisa de distopias?
Quando a carta magna estadunidense foi promulgada em 1789, Benjamin Franklin, um dos autores do documento, escreveu a um amigo: “Nossa nova Constituição foi agora implementada e tudo sugere que ela promete durar; porém nada nesse mundo se pode dar como certo, exceto a morte e os impostos”. A depender do êxito do transumanismo, contudo, a conclusão do inventor do para-raios precisará ser revista. Os impostos sobreviverão à morte.
Eduardo Giannetti da Fonseca é economista e filósofo. O texto acima foi adaptado de um trecho de “Imortalidades”, seu livro recém publicado pela Companhia das Letras.