A origem da Goldman Sachs, da Lehman Brothers e de outras gigantes das finanças americanas não é muito diferente da história do Grupo Silvio Santos ou da Casas Bahia.

Algumas das maiores instituições financeiras do mundo “nasceram de precárias carroças de madeira e mochilas de lona abarrotadas,” escreve o jornalista Daniel Schulman em Os reis do dinheiro: A épica história dos imigrantes judeus que transformaram Wall Street (Portfolio Penguin; 720 páginas).

O livro conta a saga dos judeus das famílias Goldman, Sachs, Loeb, Lehman, Warburg e Schiff, entre outras, que partiram de uma Europa convulsionada por revoluções no século XIX e chegaram aos EUA praticamente sem nenhum dinheiro, recomeçando a vida como mascates e pequenos comerciantes – exatamente como fariam no Brasil, décadas depois, Silvio Santos e Samuel Klein. 

Os ‘reis do dinheiro’ era a maneira que os jornais americanos costumavam chamar Jacob Schiff e outros destacados banqueiros judeus no início do século passado. São quase todos de origem alemã, nascidos em famílias de comerciantes que vinham sofrendo com os conflitos políticos e religiosos na Europa. Cruzando o Atlântico, prosperaram e se transformaram em titãs das finanças e barões da indústria americana.

O livro é a história também de como esses banqueiros, já ricos e influentes, passaram a financiar atividades – e até mesmo guerras – contra quem oprimisse judeus ao redor do mundo. Para os antissemitas, era a prova de que os financistas judeus estavam por trás de conspirações a favor de seu povo. 

“Os judeus são inimigos de tudo que os anglo-saxões entendem por civilização,” dizia em 1920 uma reportagem do jornal The Dearbon Independent, controlado por Henry Ford, um antissemita notório. A série de matérias, que citava inclusive o antigo texto conspiratório Os Protocolos dos Sábios de Sião, foi editada em livro. Ford mandou imprimir milhões de cópias, com o título The international jew: the world’s foremost problem (O judeu internacional: o maior problema do mundo). 

Uma reportagem do New York Times de 1922 contava que um grupo de extremistas nacionalistas da Bavária, liderados por um certo Adolf Hitler, mantinham um retrato de Ford na parede de seu escritório e tinham exemplares de The International Jew traduzidos para o alemão.  

A seguir, um excerto de Os reis do dinheiro.  

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A experiência de percorrer as alamedas estreitas e ordenadas de Salem Fields, onde os sócios fundadores da Goldman Sachs repousam a uma curta caminhada dos irmãos Lehman, e onde os clãs Schiff e Seligman estão sepultados a poucas centenas de metros um do outro, proporciona uma sensação de humildade e, por vezes, assoberbamento.

Ali convergem diretamente as linhas do passado, seus túmulos bem cuidados servindo como placas de sinalização para a era moderna. A proximidade desses titãs e suas famílias na morte remete à intimidade desfrutada em vida. Eles foram aliados (e ocasionais adversários) nos negócios, parceiros de filantropia, amigos e, em alguns casos, parentes pelo casamento. Frequentavam a mesma sinagoga e celebravam as conquistas mútuas. Cada dinastia estabeleceu um legado excepcional por si só, mas desconcertante em termos de escala quando o foco se amplia para dar conta de seu impacto coletivo. 

Dizem que famílias como os Goldman, Lehman, Sachs, Schiff, Seligman e Warburg pertenciam a “nossa turma”, os membros de uma unida aristocracia judaico-alemã de Nova York dominante na Era Dourada.

Após a publicação de ‘Our Crowd’, de Stephen Birmingham, o saboroso best-seller de 1967 que descreve em ricos detalhes o mundo entrelaçado, quase incestuoso e afrontosamente opulento da aristocracia judaico-alemã de Manhattan, essa passou a ser a descrição universal do meio social que eles frequentavam.

Na narrativa de Birmingham, o grupo rivalizava com a elite cristã, que não se misturava: a saber, os “Quatrocentos”, uma lista da alta sociedade nova-iorquina composta por Caroline Astor.

“Eles se autointitulavam ‘Os Cem’”, escreveu Birmingham. “Foram chamados de os ‘grão-duques judeus’. Mas, na maioria das vezes, simplesmente referiam-se a si mesmos como ‘nossa turma’.” Não está claro, porém, que eles de fato se referissem a si mesmos dessa forma, motivo pelo qual tento evitar a expressão. A correspondência do próprio Birmingham e outras cartas relativas à publicação do livro questionam a origem do termo.  

Ao contrário de Birmingham, determinei-me a contar uma história diferente – menos social que financeira, política e filantrópica –, focada em um punhado de dinastias cujos membros eram particularmente próximos, cujos legados foram extraordinariamente profundos e cujas vidas constituem uma parte fundamental da narrativa sobre como os Estados Unidos modernos, e na verdade o mundo moderno, vieram a se formar. Os registros de suas empresas revelam como se deu a evolução financeira nacional, da turbulenta ascensão de Wall Street ao surgimento de algumas das companhias e indústrias quintessenciais do século XX. Sua filantropia e suas instituições são o alicerce sobre o qual a vida judaica americana foi construída. Seu apoio às artes, à literatura, ao cinema e a música, bem como às bibliotecas, aos museus e as universidades, está gravado no DNA cultural da nação. 

O título deste livro vem da expressão que os jornais costumavam empregar para descrever Jacob Schiff e outros pesos-pesados das finanças – como por exemplo em “Rei do dinheiro no banco das testemunhas”, quando Schiff foi chamado a depor perante a Câmara Legislativa de Nova York em uma investigação da indústria de seguros, ou em “Jacob Schiff, o novo rei do dinheiro”, como dizia a manchete de um efusivo artigo de jornal em 1903.  

O rótulo era aplicado não apenas a financistas judeus, mas também a magnatas cristãos como J. P. Morgan, John D. Rockefeller e Edward H. Harriman, e captava a titânica influência exercida por um grupo relativamente pequeno de banqueiros de investimento, capitães da indústria e barões das ferrovias, cujo poder, por algum tempo, rivalizou, e em alguns casos excedeu, o do próprio governo norte-americano, especialmente na então ainda pouco regulamentada área das finanças. O apelido “rei do dinheiro” era em certos casos usado para expressar reverência, cristalizando a nova obsessão americana por corporações gigantes, mas, em outros contextos, como um termo desdenhoso – uma acusação de influência desmedida e imerecida.

A riqueza e o poder, e as inúmeras formas pelas quais essas dinastias judaico-alemães deixaram sua marca no mundo moderno valendo-se de ambos, são temas que perpassam todo o livro – o qual inicialmente hesitei em escrever. Como tantos judeus, sou suscetível às difamações antissemitas que atormentam nosso povo há séculos, como a sugestão de que a ganância e a avareza são nossas características subjacentes, de que controlamos a mídia e o sistema bancário e de que fazemos parte de uma conspiração mundial para dominar o planeta.

O crescimento súbito e visível do antissemitismo na era Trump, quando iniciei este projeto, deixou-me alarmado. E se meu estudo do legado que moldou a época de Schiff e dos demais “reis do dinheiro” inadvertidamente municiasse os racistas com novo material para incrementar suas teorias conspiratórias sobre banqueiros judeus? Eram justamente esses atores malignos, notei, que, pelos motivos errados, pareciam mais empenhados em manter viva a memória de Schiff em desconexos discursos na internet eivados de distorções e mentiras.  

Mas Schiff e seus contemporâneos judeus alemães – homens que receberam muito menos do que historicamente lhes seria devido, considerando seu impacto – merecem ser conhecidos, compreendidos e, em alguns casos, celebrados. Suas histórias iluminam muita coisa sobre o passado e o presente, e isso inclui as origens do antissemitismo moderno (e as forças por trás dele) e a fraudulenta mitologia – na qual esses banqueiros judeus alemães figuram com proeminência – utilizada para justificar o assassinato em massa. Talvez, concluí, não houvesse melhor forma de combater as mentiras senão contando suas histórias na íntegra. 

Considerando as lúgubres origens dos patriarcas das famílias de banqueiros judeus alemães mais proeminentes de Nova York, era difícil imaginar que eles algum dia conquistariam notoriedade suficiente para figurar em teorias da conspiração. A maioria imigrou para os Estados Unidos na adolescência ou no início da vida adulta, como parte de uma onda crescente de judeus alemães buscando refúgio das condições opressivas e leis discriminatórias em sua terra natal. Eles desembarcavam dos navios após viajar por semanas nas acomodações mais sórdidas possíveis, com pouca coisa além da própria ambição.     

Como muitos imigrantes judeus em busca de um recomeço nos Estados Unidos, encontravam trabalho como mascates e comerciantes, vocações comuns em seu país de origem, a Alemanha, onde eram proibidos de exercer a maior parte das demais profissões. Deixando Nova York, eles penetraram no coração dos Estados Unidos, praticamente ainda rapazes. Seus caminhos não demorariam a levá-los de volta a Manhattan, dessa vez não como trabalhadores humildes, mas como os novos mestres das finanças. 

Na verdade, algumas das maiores instituições financeiras do mundo, empresas que dominariam Wall Street e impulsionariam a transformação industrial americana, nasceram de precárias carroças de madeira e mochilas de lona abarrotadas.