AZEITÃO, Portugal — A história da Herdade do Perú começa quase 300 anos atrás.
“Herdade” significa fazenda, assim como as “quintas” são equivalentes aos nossos sítios – traduzindo do Português para o português.
Estamos na ponta da Península Ibérica, no país que inaugurou a conexão perene entre os continentes com a aventura das grandes navegações, que buscavam o singular, rompendo com o hábito e os paradigmas.
Aliás, esse é o verdadeiro anseio do viajante, cada vez mais difícil de se alcançar, já que o mundo hiperconectado de hoje tende a ser igual em lugares diferentes. O turista comum não vai ao encontro das diferenças culturais e históricas de cada lugar; vai para todo canto e acaba não indo a lugar nenhum, não quebra hábitos, não se aprofunda.
Quem nos conta a história da Herdade do Peru é João Brito e Cunha.
No início do século XX, os avós de João, da tradicional família Espírito Santo, de banqueiros e empreendedores, foram visitar amigos portugueses que moravam no entorno da Herdade.
Depararam-se com a propriedade encantadora (onde perus corriam livres) erguida por uma família holandesa havia 250 anos. Entenderam que havia ali uma oportunidade (e ao mesmo tempo, uma responsabilidade) de preservar algo belo e especial, talhado pelo tempo. E, claro, abrigar com conforto a família.
“Eram onze filhos, dentre os quais a minha mãe, as dezenas de netos que vieram e as centenas de convidados do jet set internacional que era necessário receber,” diz João.
No passar das gerações, a propriedade não coube a João como parte da herança, foi para um primo. Mas em 2016, ele a adquiriu “para ser o próximo a cuidar dessas memórias — o que faço com imenso prazer, até como objetivo de vida.”
Chegar à essência da Herdade do Peru não é fácil. Exige certa profundidade, certo desejo pelo complexo.
A casa é um entroncamento de memórias. As marcas de um passado cuidadosamente preservado estão nos mais de 20 quartos, nas paredes, móveis, objetos e quadros.
A tradição oral, passada de geração em geração, traz relatos das visitas dos Rockefeller, dos reis de Espanha, e até das celebridades de hoje. Madonna já foi fotografada no local – e depois voltou, exigindo discrição absoluta.
Os jardins de Gérald Van der Kemp (que assinou a reforma dos jardins de Versalhes) estendem-se sob a imponente paisagem da Serra da Arrábida, ao sul da península de Setúbal. No caminho de acesso à casa, entre gramados perfeitos e filas de carvalhos centenários, confesso que acelerei o carro para ouvir o ruído do cascalho na imensa e imponente ala de acesso.
O almoço começou depois de uma rodada de queijos e de embutidos como presunto e carne-seca locais. Meu preferido, que recomendo enfaticamente, é o de porco preto. No dia de nossa visita, a longa mesa de 30 lugares estava ocupada por convidados de diversos pontos do planeta.
A tradição, aprendi com meu querido amigo Domingos Pereira Coutinho, é capaz de nos fazer viajar não só no espaço, mas também no tempo. (Domingos é primo de João e foi quem fez o elo entre nós.)
Na Herdade, podemos nos hospedar ou apenas passar o dia. Há também quem faça ali casamentos, aniversários, treinamentos e reuniões, e há os que querem apenas conhecer seus vinhedos e sua produção.
Aliás, os tintos, rosés, brancos e o moscatel – servidos antes, durante e depois do almoço – são biologicamente produzidos na propriedade, com as frutas da fazenda, que passaram a conviver, ao longo do tempo, com oliveiras centenárias.
Acompanharam com perfeição o arroz de pato (caçado ali mesmo), o leitão assado, as batatas fritas e a miríade de doces de ovos. No final da refeição, queijos mais uma vez, à côté de um moscatel acobreado e suavemente doce.
Uma tradição, reparei, foi rompida: no chamado para o almoço, em vez do sino de prata badalando na capela da propriedade, o próprio João pegou um megafone, convocando-nos com humor refinado e ironia.
Depois do café, em vez de nos despedirmos para voltar a Cascais, que fica a 40 minutos, embarcamos num jipe hi-tech para visitar o complexo: Desde a produção de vinhos – o rosé traz o nome da filha do proprietário, Frederica, que divide com seu irmão, também João, o amor pela propriedade.
Não pode faltar uma passada pela adega e os estábulos, com lindos cavalos da raça lusitana que os hóspedes podem montar ou atrelar em charretes. Uma selaria espetacular guarda desde arreios dos tempos do avô de nosso anfitrião, até todos os equipamentos de montaria da Hermès.
A noite ia chegando. O que seria apenas um almoço já sugeria um jantar com novas e insuspeitas delícias. A vontade de todos era contemplar o céu estrelado, sem a poluição luminosa das cidades, sentindo o frescor da mata com sons que andam de mãos dadas com o silêncio.
Não estávamos preparados para pernoitar, mas saímos decididos a voltar – para uma nova viagem no espaço, no tempo e na possibilidade de realmente viajar para fora do próprio hábito.
Frank Geyer Abubakir é o acionista controlador da Unipar e co-presidente do Instituto Sociocultural Flávia Abubakir.