Ouviram de Santo Amaro a plateia embevecida
De um povo heróico, novo brado emocionante.
Tupã, Iemanjá, Jesus e Oxalá estavam lá
Assim como a Bahia, o Gantois e o Pará.
A Rainha Quelé, Clementina de Jesus,
Chico Xavier e os quilombos d’além mar
O Brasil como pátria dos Exus,
Zés Pilintra, Babalorixás, Tupinambás.
Embaralham-se trechos e alegorias poéticas extraídas da inédita canção Vera Cruz, entoada com orgulho ufanista por Maria Bethânia para fechar o show que comemora os sessenta anos de sua incomparável carreira.
A música, de autoria de Xande de Pilares e Paulo César Feital, irrompe como novo hino informal de uma país que renasce gigante, belo, forte, impávido colosso.
A turnê, apresentou, no domingo passado, seu último show no Rio de Janeiro e segue em outubro para São Paulo. Em novembro, estreia em Salvador.
No palco, um orixá. Deslumbrante como sempre e feliz como nunca, fazia girar potente a saia branca rodada de organza que turbinava a voz de Obatalá. Axé!
Há 60 anos, Maria Bethânia canta o melhor do Brasil. Um Brasil ao mesmo tempo cosmopolita e rural. Suas escolhas nos apresentam nossos cantos e recantos. Intimamente distantes, misteriosamente notórios. Sua voz traz à luz, com a mesma reverência, as sonoridades originárias e a mais transgressora das vanguardas, um catálogo raisonné que amalgama tudo que o nosso povo produziu de melhor em séculos de resistência.
Regida pelo decano Jorge Helder, Bethânia escolheu uma banda jovem, como a prenunciar os próximos sessenta. Entre eles, Pedro Sá, responsável por infundir viçosa sonoridade na popular música brasileira a partir do início deste século. Há de se destacar um poderoso coral, incomum em suas apresentações, formado pelo trio Janeh e Fael Magalhães e Jenni Rocha, outra herança das andanças com o mano Caetano.
Que aliás está presente no show como autor de quatro músicas do repertório. O mesmo número das canções escritas por Chico Buarque. O equilíbrio deferente sublinha a importância da intérprete na história dos dois compositores. E deles na dela.
Ao lado dos dois, suas principais parcerias embalam o espetáculo: Gil, Roque Ferreira, Milton, Gonzaguinha, Chico César, Erasmo e Roberto. Nada mais e menos óbvio. Memorável também é a homenagem a Nara Leão em Diz Que Eu Fui Por Aí. Zé Keti, o autor da canção, ilustra uma das imagens mais marcantes do espetáculo, sua foto com Bethânia e João do Vale para o primordial Show Opinião, considerado o debut de Bethânia. Além do hino de Xande de Pilares, outra inédita é a música Palavras de Rita, herança da velha menina Rita Lee, dedicada em testamento à voz de Maria.
Maria Bethânia tem outro grande talento, seu dom curatorial. Não só as seleções musicais sempre foram precisas, mas as escolhas estéticas beiram a perfeição. Antigos e novos parceiros fazem do show uma inesquecível experiência sensorial. Gilda Midani agiganta Bethânia e a faz flutuar. Omar Salomão honra no design, a criatividade múltipla de Waly, enquanto Otávio Juliano e Luciana Ferraz criam uma sutil cenografia onde o contido led se coloca a serviço da cantora, decupando em suave degradê, notas, tons, timbres e sons.
Os discretos e elegantes recursos de vídeo apenas sublinham imperdíveis minúcias imperceptíveis a olho nu. Explosão visual apenas dedicada aos profundos contrastes das florestas de Sebastião Salgado.
Maneco Quinderé, um de seus principais companheiros de estrada, empenha dramaticidade também ao contraluz, que conduz as transições, e nos ensina que, na obra de Bethânia, as pausas e os silêncios também são protagonistas relevantes.
E, por fim, Eucanaã Ferraz, oxigenando as citações poéticas com textos de Davi Kopenawa e Dora Fischer Smith, cuja interseção é a lembrança humilde de nossa pequenez e insignificância como seres mortais e humanos. Gigantes, no entanto, são as palavras de Clarice Lispector, que profetiza:
“Não se compreende música: ouve-se. Ouve-me então com teu corpo inteiro.”
Façamos! Ouçamos por mais 60 anos.
Miguel Pinto Guimarães é arquiteto.