O Banco Central conquistou a autonomia operacional em 2021, reforçando sua blindagem contra interferências políticas – mas, ao contrário de outros bancos centrais, ainda não possui independência financeira.
A autonomia ficou pela metade.
A PEC 65/23, que trata desse assunto, tramita no Senado e está prestes a ser votada. O texto conta com o apoio de Gabriel Galípolo, que vem trabalhando para desbastar arestas no projeto e arregimentar votos para sua aprovação no Congresso.
O presidente do BC, entretanto, vem encontrando uma resistência ferrenha – não dos partidos de oposição, mas do próprio Governo.
Em uma reunião no Planalto na terça-feira passada, com a participação do Presidente Lula, os ministros presentes – entre eles, Fernando Haddad e Gleisi Hoffmann – demonstraram uma rara sintonia: todos foram contra a PEC, de acordo com o relato de pessoas a par do assunto.
Gleisi, a ministra das Relações Institucionais e ex-presidente do PT, teria dito na reunião que “deveriam era acabar com qualquer autonomia do BC, e não ampliar”.
Haddad, publicamente, vem dizendo que é a favor da autonomia financeira do BC, mas não nos termos da PEC.
Em um evento no ano passado, o ministro afirmou que “uma coisa é autonomia financeira – mas outra coisa é transformar [o BC] numa empresa, criando uma figura nova, que é o celetista estável e subordinar isso ao Senado, e não ao Conselho Monetária Nacional”.
A PEC iria a votação na semana passada, mas acabou sendo retirada da pauta.
O Senador Otto Alencar (PSD-BA), presidente da Comissão de Constituição de Justiça do Senado, disse ao Brazil Journal que o texto só sairá da gaveta quando houver um acordo sobre o principal ponto de atrito, que é a mudança do regime do BC para uma pessoa jurídica de direito privado, como prevê o texto. O Governo é contra essa alteração, e defende que o BC fique no regime de direito público.
“Só vai para a pauta agora quando pacificar essa discussão,” disse Alencar. “A pior situação é deixar como está. Mesmo se a decisão for para ser uma entidade de direito público, será um avanço. Um item só não deve atrapalhar o principal espírito da lei, que é de autonomia orçamentária e financeira para o Banco Central.”
O relator do projeto, Senador Plínio Valério (PSDB-AM), disse que tirar do texto a mudança para o regime privado inviabilizaria a essência do projeto.
“O BC não aceitaria, acham que mata a PEC. Mas o Governo não quer abrir mão disso,” disse Valério. “Estão tentando encontrar um meio termo, mas não vejo meio termo possível.”
Segundo Valério, “no voto a gente ganha” – mas Alencar, o presidente da CCJ, tem a prerrogativa de manter o texto na gaveta, se quiser. “Otto tem boa vontade, mas está sob pressão.”
Para Valério, o Governo decidiu impor empecilhos “aos 45 minutos do segundo tempo” com o intuito de enterrar a PEC.
Na justificativa da PEC, o texto diz que “a necessidade de recursos financeiros para o cumprimento de sua missão institucional exige alteração do arcabouço legal” do BC.
“A proposta de evolução institucional do Banco Central do Brasil prevê a garantia de recursos para que atividades relevantes para a sociedade sejam executadas sem constrangimentos financeiros, tanto para a instituição quanto para o Tesouro Nacional,” afirma o texto.
O BC tem enfrentado dificuldades para repor servidores e reter funcionários. Ficou 12 anos sem fazer concurso. Na última década, perdeu 35% de seu quadro de funcionários – caso raro de repartição pública que tenha passado por enxugamento.
Com a aprovação da PEC, o BC teria liberdade para alterar a maneira de contratação de servidores, passando para o regime de CLT, como é no BNDES.
De acordo com Vivian Rosadas, presidente da Associação Nacional dos Auditores do BC, havia dentro do Governo uma divisão entre a ala mais ideológica e a mais pragmática, favorável à PEC.
“Mas agora, o Governo pendeu para o lado contrário a qualquer autonomia que o BC possa ter,” ela disse ao Brazil Journal.
No entender da associação, não há como conceder a independência financeira de fato dentro do regime de direito público.
“Precisamos dessa PEC para concluir a autonomia aprovada em 2021,” disse Vivian. “Quando dizem que a alteração de regime é inegociável, entendemos isso como uma oposição ao projeto – porque isso é o cerne da PEC.”
Hoje o BC é uma autarquia que fica sob o guarda-chuva institucional da Fazenda. Com a PEC, a autoridade monetária passaria a ser uma pessoa jurídica de direito privado integrante do setor público financeiro.
Pelo projeto, o BC passaria a se custear com os recursos próprios obtidos com a senhoriagem – o ‘lucro’ com a emissão de moeda e com o custo de oportunidade dos passivos sem remuneração – de maneira similar ao que ocorre com o Federal Reserve e o Banco Central Europeu.
Atualmente, os limites orçamentários têm impactado os projetos do BC, como se viu no atraso para a entrada em funcionamento do Pix Automático, e impõem restrições ao desenvolvimento da agenda de inovações do Open Finance e do Drex.
“O Pix funciona hoje com 32 servidores apenas. Precisa dobrar,” disse o Senador Plínio Valério. “Há dezenas de tentativas de fraudes todos os dias. O BC precisa investir em tecnologia, equipamentos.”
Em uma audiência na CCJ, em junho do ano passado, o economista Marcos Lisboa afirmou que “a arquitetura tecnológica do Banco Central fica prejudicada com a falta de recursos – e isso fragiliza o sistema, coloca em risco os meios de pagamentos.”
O sucesso do Pix elevou o custo operacional do BC, tanto no desenvolvimento de novos recursos para a tecnologia como na manutenção e segurança da plataforma.
Há duas semanas, no evento Blockchain Rio, Galípolo disse que os gastos com tecnologia eram menos de um terço do total de despesas do BC e hoje já tomam quase metade do orçamento anual. Quase 70% dos investimentos em inovação acabam permanecendo como custo de manutenção.
Em sua apresentação, Galipolo defendeu a aprovação da PEC para dar continuidade ao desenvolvimento da plataforma do Pix, cujo sucesso trouxe aumento explosivo da demanda e a possibilidade de plugar novas aplicações e serviços.
“É importante que o Banco Central, dentro de seu arcabouço legal e institucional, tenha ferramentas e esteja preparado para acompanhar as transformações e revoluções que ele mesmo ajudou a operar no sistema financeiro,” disse Galípolo. “A PEC permite manter o Pix na condição que ele tem hoje. É essencial que a gente consiga avançar nessas agendas para que o Banco Central não seja vítima das próprias entregas que ele fez.”