O que leva a obra de um artista plástico a valer muito dinheiro? Como identificar cedo a próxima Beatriz Milhazes? 

O mercado de arte tem diversas semelhanças com o mercado de ações (com exceção da regulação que dispõe com informação privilegiada). Como as blue chip stocks, existem os blue chip artists, que se valorizam com enorme rapidez e passam a ser objeto de desejo dos colecionadores milionários.

Com uma dinâmica própria que conta com o alto poder de influência das grandes galerias, o mercado de arte muitas vezes não reconhece a genialidade ou a importância histórica de certos artistas. Artistas reverenciam certos colegas que, apesar da qualidade técnica, não são vendáveis; os chamados “artistas de artistas”. Entretanto, ávido por novidades ou impulsionado pelo momento sócio-político, o mercado de vez em quando faz justiça ou promove um resgate histórico.  

Um destes casos é Glauco Rodrigues, que os paulistanos podem conhecer agora (se a covid deixar) na galeria Bergamin & Gomide. A exposição “Acontece que somos canibais” — com texto de Lilia Moritz Schwarcz e obras da fase pop do artista — abriu praticamente vendida, com preços em dólares na casa dos cinco dígitos e disputa de colecionadores por algumas obras. Uma grande ironia para um artista falecido há 17 anos, cuja obra já foi objeto de livros, documentários e tantos debates.  

Glauco nasceu em 1929 em Bagé, o município de 120 mil habitantes no Rio Grande do Sul que foi celeiro de diversos artistas, poetas, além do analista mais famoso do Brasil, inventado pelo gênio de Luis Fernando Verissimo. 

Aliás, Veríssimo foi muito próximo de Glauco. Publicaram livros infantis juntos, como “O Arteiro e o Tempo.” Veríssimo lembrou certa vez que “na sua obra gráfica, como na sua pintura, o Glauco nunca deixou de dizer: ‘Que país curioso este nosso, e que país bonito.’” 

E em se tratando de beleza brasileira, Glauco foi atrás dela. Ainda jovem, mudou-se para o Rio, onde viveu e produziu até morrer. Apaixonado pela Cidade Maravilhosa, retratou os símbolos da identidade carioca, como o Pão de Açúcar, o futebol, o samba e os banhistas. Com uma linguagem tropical, retratava o imaginário popular, com cores vibrantes, muito verde e amarelo, temperando seus traços com boas doses de crítica e ironia.

Suas obras lembram as aquarelas de Debret e Rugendas, mas com uma vibração carnavalesca, um toque pop e o uso de frases e palavras provocativas. 

Na década de 50, participou de diversos movimentos no Rio, como a publicação Senhor, onde seu amigo Carlos Scliar colaborava, juntamente com Clarice Lispector, João Guimarães Rosa, Paulo Francis e Jaguar.  A revista não durou muito mas fez história, sendo que Glauco foi o destaque por sua contribuição gráfica. 

Glauco participou de exposições com Helio Oiticica e Lygia Clark e passou um tempo fora do Brasil durante a ditadura, quando incorporou a arte pop em suas obras, aplicando seu olhar tropical e crítico. Não há dúvidas de que teve bastante sucesso enquanto vivo… até ser esquecido.

Depois de sua morte, em 2004, passou quase uma década ignorado, quando, em 2013, a exposição “O Anjo da História” foi realizada na Escola de Belas Artes de Paris. O curador do projeto, o teórico francês Nicolas Bourriaud, reverenciava o trabalho de Glauco, apesar de notar que não era mais lembrado em seu próprio país. (É tristemente comum o Brasil ter que ouvir do exterior que precisamos celebrar a qualidade do que criamos aqui, mas isso fica para outro dia.)

Presente em alguns leilões menores pelo país ao longo dos anos, a obra de Glauco, ainda que reconhecida pela crítica, não havia arrebatado o mercado de arte como merecia. Até agora.

Em uma guinada repentina (tanto no preço quanto na visibilidade), Glauco passou a ser disputado por grandes colecionadores contemporâneos nos últimos meses.

Curioso imaginar como seria sua reação se estivesse vivo, ao ver o resgate de sua obra no contexto político atual. Talvez o timing do mercado de arte afinal tenha um certo sentido, como bem disse o texto de Lilia na apresentação da exposição:

“… nos dias hoje, nesses tempos tão distópicos em que vivemos, quando a realidade parece exagerada e surreal (mas infelizmente não é), quando a política vira espetáculo fácil de autoritarismo, onde o verde e amarelo foram sequestrados de uma parte importante da população, a ironia sutil de Glauco talvez esteja finalmente em casa e diga respeito aos tempos do agora.”

A pergunta de US$ 1 milhão — “o que leva um artista a valer muito?” — continua sem resposta, mas quem comprou um Glauco antes desta redescoberta está duplamente orgulhoso: tem um artista de expressão histórica e garantiu um preço “pré-IPO.”

Rita Drummond escreve sobre arte no Brazil Journal.