Uma decisão da CVM sobre a distribuição de dividendos dos fundos imobiliários está causando celeuma na indústria. O cerne do debate: o critério para distribuição é o lucro contábil ou o regime de caixa?
Para os gestores de FIIs, o regulador está criando uma insegurança jurídica ao mudar um entendimento adotado pelo mercado lá se vão oito anos – e gerando um problema que pode até inviabilizar a indústria.
Na decisão, publicada ontem à noite, a CVM afirma que sempre teve o entendimento de que os FIIs só podem distribuir rendimentos quando há lucro contábil. O problema é que, desde 2014, baseado na interpretação de um ofício da própria CVM, boa parte da indústria vem distribuindo resultados quando o fundo tem lucro caixa – sem que a CVM contestasse.
O assunto entrou em pauta agora porque a área técnica da CVM resolveu questionar o fundo Maxi Renda, administrado pelo BTG e gerido pela XP, depois de identificar que o fundo não estava seguindo o entendimento da autarquia, já que estava distribuindo rendimentos mesmo quando eles excediam os valores reconhecidos no lucro do exercício e/ou acumulado – ou seja, com base no lucro caixa.
No entender dos técnicos da CVM, esse excesso distribuído aumentaria a rubrica de prejuízos acumulados do fundo de forma recorrente e, portanto, não poderia ser classificado como rendimento, mas sim como amortização do capital investido pelos cotistas.
O Maxi Renda respondeu que estava seguindo o ofício de 2014 e o assunto foi para o colegiado da CVM que, por maioria, concordou com a área técnica – vencido o voto do diretor Alexandre Rangel.
A “nova” interpretação agora terá que ser levada em consideração por toda a indústria.
A questão é que, como a CVM está dizendo que sempre teve esse entendimento, os fundos vão ter de voltar no tempo e reclassificar as distribuições feitas em valores acima do lucro líquido não como rendimento, mas como amortização – nesse mecanismo, incide imposto sobre o ganho de capital.
“Os investidores que têm ou tiveram as cotas dos fundos também vão precisar reclassificar os rendimentos como amortizações, retificando as declarações de IR”, diz o educador financeiro Nathan “Nod” Octavio, que publicou sobre o assunto.
O fundo Maxi Renda é um dos maiores do mercado, com quase 500 mil cotistas – ou um terço dos CPFs da indústria.
Se mantida, a decisão da CVM vai obrigar os administradores a revisar a classificação de todos os pagamentos feitos aos cotistas – inclusive os que já saíram do investimento.
Em seu voto vencido, o diretor Rangel disse que a nova decisão confronta o ofício de 2014 e a prática seguida por boa parte da indústria, além de gerar “insegurança jurídica, externalidades negativas e assimetrias regulatórias, com possíveis implicações sistêmicas,” disse o diretor.
Na avaliação de advogados especializados em mercado de capitais, a decisão da CVM está tecnicamente correta.
“A questão é que, aparentemente, esses fundos estavam distribuindo dividendos sem ter lucro. Será que pode ficar distribuindo dividendo sem ter lucro só porque é bom para a indústria? Talvez esses produtos não sejam tão bons se só são viáveis se forem construídos a partir de um pressuposto equivocado”, diz um advogado.
No entanto, pela questão da previsibilidade, ele acredita que essa “nova” interpretação da CVM só deveria valer daqui para a frente.
Um gestor de FIIs faz a ressalva de que, contabilmente, a marcação de um prejuízo não realizado deveria afetar uma conta específica do patrimônio líquido, não os resultados.
O BTG, que administra o Maxi Renda, planeja recorrer da decisão do colegiado da CVM.
Gestores afetados pela decisão manifestam a esperança de que a CVM vai rever a decisão, particularmente dado que o colegiado está sendo renovado: o diretor Fernando Galdi, que deu o voto que prevaleceu nessa decisão, já deixou a CVM; e dois novos diretores estão chegando: Otto Lobo e João Accioly.
Na indústria de FIIs, o prejuízo contábil é comum. Os FOFs e os fundos de tijolos são afetados pela oscilação da taxa de juros, e os fundos de CRI marcam seus papéis tendo como base a NTN-B – como o juro abriu, eles estão agora sendo marcados com prejuízo, mesmo sem ter default na carteira.
Daniel Caldeira, sócio da Mogno Capital, que gere fundos imobiliários, diz que a decisão da CVM já está levando os gestores a repensar o produto.
“E se um fundo distribuir rendimentos mensais, fizer a reavaliação de ativos em junho e descobrir só nesse momento que terá o prejuízo contábil e que fez uma distribuição indevida?” questiona Daniel. “Os gestores agora estão discutindo o que fazer: trocar a periodicidade dos dividendos de mensal para anual ou trocar por amortização. As duas coisas diminuem a atratividade do produto.”
Para ele, como os FIIs atraem pequenos investidores que inclusive contam com essa renda mensal, a CVM poderia ter optado por discutir a questão com o mercado para encontrar uma outra solução que não afetasse tanto a indústria.
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Nathan diz que toda a confusão acontece porque a lei dos fundos imobiliários está mal escrita. Pela lei, os FIIs são obrigados a distribuir no mínimo 95% do lucro apurado em regime de caixa – mas a questão é que não existe uma definição contábil para lucro caixa, porque o lucro é apurado em regime de competência, não de caixa.
Durante muitos anos, diz ele, cada gestor ou administrador de fundo interpretou a regra de um jeito. Até que, em 2014, a CVM divulgou um ofício que, no entendimento do mercado, deixava claro que entraria no cálculo do resultado do fundo tudo aquilo que transitasse simultaneamente pelos regimes de competência e de caixa.
Em outras palavras, se um evento transitou pelo balanço mas não implicou em movimentação de dinheiro, ele não entraria no resultado. Se o fundo fizer uma reavaliação negativa de ativos, por exemplo, ela não contaria de imediato nos resultados – apenas quando e se o imóvel for vendido nesse valor mais baixo.