Sou apaixonado pela mobilidade urbana, e em particular pelo automobilismo, em todas suas dimensões.  Amo o design, a velocidade, o ronco dos motores — e, por mais politicamente incorreto que possa parecer, até o momento não consegui me engajar com a Fórmula E, apesar de ter curtido muito dirigir um Tesla. 

A mobilidade urbana tem passado por inovações constantes — algumas disruptivas — ao longo da história: dos cavalos às charretes, o motor a explosão, a linha de montagem, o cinto de segurança, os air bags, o motor turbo, o carro elétrico, o carro autônomo… 

O tema é tão apaixonante que há uma variedade de filmes e documentários que tratam de temas ligados ao automóvel: Flash of Genius (2008), Rush (2013), Tucker: The man and his dream (1988), The duel (1971, de Spielberg), Days of Thunder (1990), Cars (2006, animação da Pixar), Senna (2010), entre outros. 

Agora, acaba de ser lançado nos cinemas o filme Ford v Ferrari, que apesar de ter o automobilismo como tema, é na verdade um filme sobre empreendedorismo, um dos melhores que já assisti. (Este artigo não contém spoilers; apenas apresenta uma visão do filme que não tem aparecido na imprensa.)

De um lado estava a Ford, uma empresa tradicional com governança de controlador e CEO autoritário, Henry Ford II, filho do fundador (estamos falando da década de 60 do século passado, mais precisamente, do ano de 1966). Uma empresa que inovou no setor principalmente com a linha de montagem que viabilizou a democratização do automóvel com a redução do preço pela produção em escala. 

Lee Iacocca, então um executivo jovem, ambicioso, bom marqueteiro e visionário, percebeu que a Ford não estava alinhada com o desejo da geração dos baby boomers por carros mais modernos, esportivos e velozes. Iacocca, que mais tarde se tornaria um ícone da indústria automobilística após tirar a Chrysler do buraco, convence Henry Ford de que a empresa precisava se mexer.  

A Ford então decide comprar uma startup italiana que fazia excelentes carros esportivos e vinha vencendo as 24 horas de Le Mans de modo consistente.  Essa startup se chamava Ferrari. 

A Ferrari precisava levantar recursos e buscava um sócio na indústria, mas a tentativa da Ford não teve sucesso. 

Aqui tem-se a primeira lição para os empreendedores: se você vislumbra um futuro brilhante para sua startup, muito cuidado se você deseja buscar como sócio um empresa incumbente do mesmo setor, pois ele poderá induzir decisões na startup que estejam desalinhados com o objetivo da empresa em perseguir inovações radicais e, possivelmente, provocar uma disrupção no setor. 

A Ford era um elefante querendo dançar e, como bom empreendedor, Enzo Ferrari percebeu que ela não seria a melhor escolha para capitalizar a Ferrari.

Ferida em seu brio por ter sido esnobada na negociação, a Ford resolve competir com a Ferrari no terreno do automobilismo esportivo, implementando a estratégia de marketing de Iacocca e embalada por um desejo obsessivo de superar a Ferrari em Le Mans. Tem-se assim os principais ingredientes do ótimo roteiro.

Dentro das melhores práticas da inovação aberta, a Ford convida Carroll Shelby, um piloto de corridas americano que havia vencido as 24 horas de Le Mans, para ajudar no desafio. Shelby funda uma outra startup, a Shelby American, capitalizada pela Ford, para produzir carros esportivos e, paralelamente, construir um carro para desafiar a Ferrari no seu quintal: Le Mans. Uma tarefa difícil e que exemplifica os problemas enfrentados por empreendedores, pois jamais um carro americano havia ganhado as 24 horas de Le Mans.

A partir daí o filme se torna fascinante. Ele mostra o quanto é difícil a busca da inovação pelos elefantes corporativos, mesmo seguindo pela vereda da inovação aberta. As amarras corporativas, as intrigas, os conflitos de agência, tudo isso está no filme, e influenciam diretamente na liberdade que a Shelby necessita para perseguir seu objetivo de bater a Ferrari em Le Mans. 

A interferência da Ford na Shelby chega ao ponto de atingir o pilar essencial de uma startup, que é a escolha do time correto para realizar seus objetivos — um exemplo claro da dificuldade, e até da impossibilidade, de empresas incumbentes competirem com startups de um modo geral, e uma comprovação do quanto Enzo Ferrari estava certo em rejeitar a proposta da Ford.

Ford v. Ferrari é um filme de outra época, mas que fala profundamente sobre o nosso tempo.

Jonas Gomes é matemático, foi sócio fundador da BR Investimentos e atualmente é responsável pelo private equity da Gama Investimentos.