Não há nada além de um foco de luz, uma escrivaninha no centro do palco e um copo de água ao alcance da mão esquerda que permanecerá intocado.

Sobre a mesa, folhas e mais folhas, 46 no total, com um texto digitado em caixa alta e ressaltado em negrito. A ambientação mínima e desprovida de qualquer recurso cênico ganha contornos espetaculares por causa de Fernanda Montenegro. 

Sim, a maior atriz brasileira de todos os tempos, que completa 95 anos em outubro, resume a essência do teatro e emociona o espectador sem evidenciar o uso da apurada técnica.

Fernanda Montenegro Lê Simone de Beauvoir pretende ser, como o modesto título sugere, uma leitura dramática de trechos de A Cerimônia do Adeus, publicado pela autora francesa em 1981, cinco anos antes de sua morte. 

A dramaturgia organizada pela intérprete, que ainda assina a direção e selecionou a trilha sonora, foi criada para um evento na Academia Brasileira de Letras em março de 2023, mas ganhou vida própria. 

Primeiro, foram quatros apresentações nos teatros Poeira e Multiplan, no Rio de Janeiro, no ano passado. Quem viu garante ter sido uma experiência extraordinária, e o boca-a-boca repercutiu a ponto de temporadas mais longas lotarem os teatros Prio e Casa Grande, também no Rio, entre março e maio.

Os paulistanos agora têm o privilégio de se comoverem com a leitura de Fernanda em uma temporada que se encerra no dia 21 no Teatro Raul Cortez, do Sesc 14 Bis. 

Os 10 mil ingressos colocados à venda para as 20 sessões se esgotaram em poucas horas, e filas de espera dignas desta gigante das artes são formadas todas as noites por quem nutre a esperança de aplaudi-la diante de alguma desistência. Uma apresentação extra está programada para 11 de agosto, às 19h, no Auditório Ibirapuera, com entrada franca e transmissão simultânea para a área externa do parque.

“O homem é uma realidade finita que existe por sua própria conta e risco. No princípio, o homem é nada, e será nada até o que fizer de si mesmo.” 

Estas são as palavras de Simone vociferadas por Fernanda nos primeiros momentos da leitura, a esta altura já elevada à condição de um grande espetáculo. Em 75 minutos, os tais escritos da autora são perfeitamente incorporados à trajetória da atriz. Assim como Simone, Fernanda contrariou o seu tempo e fez muito de si mesma.

Simone nasceu em Paris em 1908. Fernanda, em 1929, no Rio de Janeiro. Na época, a francesa cursava filosofia na Sorbonne e se enturmava com o meio intelectual da universidade quando conheceu Jean-Paul Sartre (1905-1980) e ouviu dele que “nós é que temos que agarrar o destino com as nossas próprias mãos.”

O amor por Sartre atravessou sua vida e colaborou para que suas ideias se transformassem em uma obra que atinge leitores até hoje e gera novas ideias, de acordo com as experiências de cada um. 

“Minha aproximação com a obra de Simone de Beauvoir vem desde quando eu tinha 20 anos. Essa fundamental feminista é uma personalidade referencial para a minha geração,” declara Fernanda no programa do espetáculo.

Não era nada fácil para uma moça pensar na carreira artística em meados da década de 1940, ainda mais para aquelas criadas no subúrbio. Fernanda, ainda sob o nome de batismo, Arlete, começou a desbravar territórios como locutora de rádio em 1945, e estreou nos palcos cinco anos depois na peça Alegres Canções na Montanha, já com as palavras de Simone reverberando na cabeça.

“Eu amei os livros. Eu amei apaixonadamente os livros e nunca mais os livros me abandonaram,” diz Fernanda em cena, dando voz à feminista.

O encanto de Fernanda Montenegro Lê Simone de Beauvoir ultrapassa o racional do público, e as falas de uma ganham associação com a trajetória da outra. 

A mulher no palco – de cabelos brancos, camisa e calça casuais – busca na sua vivência a emoção e, com autoridade, estabelece o jogo teatral. O sentimento com que Simone escreveu sobre Sartre remete ao longo casamento de Fernanda com o ator e produtor Fernando Torres (1927-2008). As angústias e reflexões sobre a velhice geram ecos impressionantes.

A liberdade que permeou o relacionamento de Simone e Sartre parece difícil de ser associada ao casal Fernanda e Fernando, mas nesta hora a atriz, sábia, provoca o público ao afirmar o quanto a autonomia da escritora surtiu impacto sobre ela. Não se imagina também Fernanda em bares sórdidos ou clubes de strip-tease, como aparece no texto da autora francesa, mas ela talvez tenha estado por lá, nem que seja através de seus personagens.   

Entre 2009 e 2011, Fernanda já havia interpretado Simone no monólogo Viver Sem Tempos Mortos, sob a direção de Felipe Hirsch, sua última incursão nos palcos em um espetáculo assumidamente teatral. Agora, a atriz garante que, pelo menos para ela, é outra coisa, é diferente, talvez pelo respeito ao texto que deveria ser decorado, de acordo com os mandamentos de seu ofício, e ela, na maior parte do tempo, lê. Sim, porque, muitas vezes, se percebe o olhar da artista encarando a plateia por minutos e só recorrendo ao papel em um suposto momento de insegurança.

Mesmo que Fernanda viva sem tempos mortos, racional e prática como é, deve imaginar esta montagem como  sua despedida do palco que tanta glória lhe trouxe. Mas ao contrário do que se possa pensar, não há melancolia; ela faz disso uma celebração. 

“Hoje, não sou mais escrava do meu passado. O que sempre quis foi comunicar de maneira mais direta o sabor da minha vida,” afirma, tomando para si as falas da escritora, na reta final da apresentação.

Fernanda Montenegro, aos 94 anos e 80 de carreira, sem dúvida, não é escrava de ninguém. Numa época regida pelo iPhone e pela pouca reverência ao passado, a atriz magnetiza mais de 500 pessoas por noite em torno de sua presença. Assim como Simone, ela desafia o tempo na construção de um pensamento artístico capaz de atravessar gerações.