Alexei Navalny amava a Rússia. Foi por amor a seu país que o mais ousado dos opositores de Vladimir Putin morreu em uma prisão no Círculo Ártico, em fevereiro de 2024, aos 47 anos.

Em diversas passagens de seu livro de memórias, recém-lançado no Brasil, o advogado e ativista declara-se encantado com a Rússia, com seu povo, sua língua e suas “paisagens melancólicas”. A obra ganhou o apropriado título de Patriota (tradução de Clóvis Marques; Rocco; 448 páginas). (Para comprar, clique aqui)

Escrito em condições excepcionais, o livro não é bem aquele que seu autor idealizava. Navalny começou trabalhar nele em 2020, na Alemanha, onde passou cinco meses se recuperando de um envenenamento por Novichok, um agente nervoso empregado em ações clandestinas da FSB, a agência de segurança russa.

Em janeiro do ano seguinte, ele retornou à Rússia para continuar seu trabalho à frente da Fundação Anticorrupção, que denunciava as atividades ilícitas do governo Putin e dos oligarcas que orbitam ao seu redor.

Foi preso ao desembarcar em Moscou – e esse acidente de percurso teve repercussões sobre o livro.

Depois de narrar sua infância às vésperas da dissolução da União Soviética e de admitir que teve um entusiasmo juvenil (logo convertido em desilusão) por Bóris Yeltsin, o primeiro presidente da Rússia pós-comunista, Navalny rompe a narrativa cronológica para anunciar que está escrevendo de uma presídio em Moscou.

Ele manifesta descontentamento com o formato híbrido que esse incidente impõe ao livro: metade memórias, metade diário da prisão.

A edição póstuma da obra, porém, deixou o conjunto mais coeso do que seria de se esperar. A alternância entre o passado do memorialista e o presente do prisioneiro político confere uma pungência particular à narrativa.

Navalny conta, por exemplo, do dia feliz em que se apaixonou por Yulia, sua mulher e mãe de seus dois filhos. E o leitor sabe que ele está recordando essa cena em uma cela.

O prisioneiro permaneceu em Moscou enquanto aguardava o julgamento por uma acusação antiga e mal substanciada de fraude. Depois de condenado, foi transferido para a província de Vladimir, onde as condições prisionais são mais árduas.

Com dores lancinantes na lombar, Navalny fez greve de fome para exigir atendimento médico. Seus guardiões aproveitavam os mínimos pretextos para interná-lo em solitárias que eram escaldantes no verão, geladas no inverno, e úmidas em todas as estações.

Novos processos foram abertos contra o inimigo de Putin. Ele sabia que dificilmente sairia vivo da prisão. Mas a autocomiseração não encontra lugar em Patriota: Navalny trata a própria desgraça com um humor sardônico.

Seguiu escrevendo sempre que podia. Por meio de seus advogados, publicava textos no Instagram, exortando os russos a não temer a repressão.

Ele encontrava consolo na fé cristã, descoberta, segundo relata, quando a filha nasceu. Também acreditava no caráter de seus compatriotas: “O povo russo é bom; seus dirigentes é que são horrorosos”.

O perfil político que Navalny apresenta no livro é intenso e apaixonado na forma, mas um tanto genérico no conteúdo. Ele defende sobretudo certos valores básicos que ainda são corpos estranhos na vida pública russa: eleições livres e honestas, liberdade de expressão, judiciário independente.

O memorialista passa ao largo de opiniões controversas que deu no passado sobre temas como imigração. E justifica sua participação em algumas Marchas Russas – eventos promovidos por nacionalistas radicais – como um esforço para dialogar com todos que pudessem se juntar em uma frente única contra Putin.

Em compensação, sua posição contrária à Guerra da Ucrânia é clara e incisiva.

Declarada ilegal, a Fundação Anticorrupção foi desmantelada na Rússia. Operando no exterior, ainda revela escândalos no governo, mas sem o impacto que tinha quando era liderada por seu carismático fundador.

O legado de Navalny é incerto. A Rússia ainda precisa fazer justiça a esse filho amoroso e irreverente.