Já passava da meia-noite de segunda para terça-feira quando um gestor de investimentos me alertou para um formulário 358 que a Azul enviara à CVM naquela tarde.

Para quem não sabe, o formulário 358 é uma obrigação regulatória: nele, as empresas listadas comunicam ao regulador se seus executivos, conselheiros ou acionistas controladores movimentaram ações da companhia naquele mês.  O mercado acompanha estas negociações e tenta tirar conclusões sobre o que elas significam sobre o nível de confiança destes “insiders” na empresa.

No 358 da Azul, que subiu no site da CVM às 18:34 de segunda, havia algo digno de nota.

Em meio ao pandemônio da pandemia, com as ações das companhias aéreas já derretendo na Bolsa, o controlador da Azul, David Neeleman, havia vendido ações da empresa e reduzido sua participação pela metade.

Apesar de ser óbvio que uma movimentação como esta fatalmente chamaria a atenção e suscitaria perguntas, a Azul decidiu não fazer um comunicado ao mercado (explicando as razões da venda) quando subiu o formulário no site.

À falta de uma explicação oficial, escrevi um post — publicado à 1:56 a.m. — que dava três explicações possíveis para a venda: ou Neeleman acredita que a empresa não vai sobreviver, ou teme ser diluído pelo pacote de ajuda do BNDES, ou ainda pode ter tido um problema de liquidez na pessoa física.

Na manhã de terça, depois do Brazil Journal chamar atenção para a venda, a Azul publicou um comunicado mostrando que a terceira opção estava correta:  segundo a companhia, Neeleman havia tomado um empréstimo de US$ 30 milhões dando como garantia as ações da Azul, e, no meio da crise, fora executado pelos bancos.  

Mas como a manchete “controlador vende metade da posição” é ruim do ponto de vista da imagem, a partir dali a companhia passou a insistir que “quem vendeu foram os bancos, e não o David,” e que a venda era “contra a vontade” de Neeleman.

O assunto podia ter morrido aí, mas nesta quarta-feira, o CFO da Azul aproveitou uma live com investidores do varejo para criticar a cobertura que o Brazil Journal fez da venda — o que nos obriga, lamentavelmente, a voltar ao assunto.

“Acho que este aqui é um caso típico para você perceber que, às vezes, o que você lê num artigo — tá dizendo ‘X’ — e a verdade é exatamente o oposto,” disse o CFO. “Um monte de gente escreveu que ‘o David vendeu’, ‘o David vendeu’, ‘o David vendeu’.  O David NÃO vendeu!  É um absurdo alguém falar que o David vendeu! O David teve uma garantia executada contra a vontade dele.” 

Agora você já sabe:  quando perder a casa para o banco, diga à patroa:  “não fui eu que perdi, meu bem; foi o banco que tomou.”

Neeleman poderia ter quitado o empréstimo e mantido as ações. Optou por não fazê-lo (talvez porque possa continuar no controle com suas ações super votantes).  Ou talvez não tivesse liquidez para isso.  Who knows?  

Na mesma live, o CEO da Azul, John Rodgerson, disse o seguinte sobre o patrimônio de Neeleman:

“A liquidez total dele está na TAP, está na Breeze, ele é uma pessoa de aviação. Ninguém sabia que o mundo ia parar por dois meses e todos os ativos do cara estavam numa linha aérea.  É triste. Ninguém está chorando por David, porque ele ainda tem muitos ativos na vida, e ele não perdeu o controle da empresa.” 

David vendeu.  Forçado pelos bancos, mas vendeu.  O verbo não muda, e mudar o sujeito da frase de “David” para “bancos que deram crédito a ele” talvez ajude a imagem da Azul, mas infelizmente não muda os fatos.

Sob o ponto de vista da imagem, é compreensível a insistência da empresa em demarcar a diferença, mas é inaceitável que a companhia, não tendo feito um trabalho tempestivo de divulgação das causas da venda, use o episódio para atacar quem deu a notícia.  Aqui não, obrigado. 

Rodgerson dá uma pista de como a companhia poderia ter evitado tudo isso.

“Talvez nós podíamos ter gerenciado isso melhor com o mercado”, disse na live, talvez querendo dizer que a empresa poderia ter informado a venda e suas razões junto com o 358, evitando essa briga semântica.  “Mas,” continuou, “quando se trata de uma pessoa física, é um pouco mais complicado. Mas o David foi super bacana e disse, ‘Fala a verdade! Fala o que aconteceu e vamos em frente.”” 

A Azul é uma grande empresa, repleta de qualidades — mas o velho truque de tentar ‘kill the messenger’ é uma distração contraproducente num momento tão delicado.