Diante das pressões inflacionárias de um mercado de trabalho muito apertado, o Federal Reserve vai subir os juros acima do previsto nos preços de mercado. Assim, no lugar do esperado “pouso suave,” a economia deverá entrar em uma recessão leve, provavelmente com dois trimestres de recuo no PIB.
Esse é o cenário desenhado por Eric Rosengren, que, durante mais de uma década, foi presidente do Federal Reserve de Boston – um dos Feds regionais com direito a voto nas decisões de juros.
“Estamos bem acima da meta de 2%, então o Fed precisa agir para desacelerar a economia e trazer a inflação para perto da meta em um horizonte de previsão razoável,” Rosengren disse ao Brazil Journal, em uma conversa em São Paulo, antes de sua participação na Latin American Investment Conference do Credit Suisse.
“Os mercados ficarão surpresos com o fato de o aperto durar um pouco mais do que eles estão esperando,” disse ele. “Ao mesmo tempo, acho que o Fed ficará surpreso com a desaceleração que veremos até o final do ano. Nesse cenário, vejo eles começando a reduzir as taxas de juros ainda em 2023, na segunda metade do ano.”
Rosengren iniciou sua carreira no Fed de Boston em 1985 e ocupou a presidência de 2007 a 2021. Na entrevista abaixo, o economista, que agora dá aulas no Massachusetts Institute of Technology (MIT), comentou por que ele e seus antigos colegas no Fed demoraram a perceber que a alta na inflação era mais resistente do que haviam estimado.
Os dados mais recentes da economia americana mostram uma redução na demanda do setor privado. Mas, ao mesmo tempo, o mercado de trabalho continua robusto. Como interpretar esses números?
Essa desaceleração foi em parte intencional. O Federal Reserve impôs um ciclo de aperto monetário bastante agressivo para os padrões históricos. Isso reflete a gravidade do problema da inflação. Na maioria dos países desenvolvidos, a alta dos preços se mostrou mais persistente do que os bancos centrais imaginavam. Ainda assim, apesar da alta de 475 pontos-base nos juros, a economia americana tem exibido grande resiliência.
Quais fatores explicam isso?
O consumo é um setor importante para a economia dos EUA. Representa 2/3 do PIB. Então não haverá de fato uma desaceleração até que o consumidor comece a diminuir os seus gastos – e começamos a ver isso agora. Se você olhar para o setor financeiro, os bancos aumentaram as suas reservas para as perdas com empréstimos. Os financiamentos estão muito mais caros do que eram há um ano.
Do ponto de vista do Fed, precisávamos de uma desaceleração da economia, porque o mercado de trabalho está muito apertado. A taxa de desemprego está em 3,5% e mais de 200.000 postos de trabalho são abertos mês após mês. São sinais de uma economia aquecida, algo ruim quando a inflação é de 6,5% e o índice PCE (principal indicador de preços observado pelo Fed) é de 5%.
Estamos bem acima da meta de 2%, então o Fed precisa agir para desacelerar a economia e trazer a inflação para perto da meta em um horizonte de previsão razoável.
A inflação entrou em trajetória de convergência para a meta?
A alta dos preços está perdendo força, mas os mercados provavelmente ficaram um pouco entusiasmados com o fato de que os números estão melhorando. Ainda estamos longe de uma inflação de 2%.
Estamos ouvindo cada vez mais opiniões de que o Fed poderá encerrar o ciclo de alta depois da decisão dessa semana. Ficaria muito surpreso se isso ocorresse. As pressões inflacionárias ainda são muito fortes.
Uma das maneiras que você pensa sobre como a inflação permanece alta é que o mercado de trabalho começa a ter salários que não são sustentáveis. Os salários estão subindo acima de 5% ao ano. Para reduzir a inflação, esse número deveria estar em torno de 3,5%.
Então uma recessão será inevitável?
Meu melhor palpite é que teremos uma recessão leve (mild). O mercado aposta em um pouso suave – e por um pouso suave eles querem dizer uma desaceleração sem recessão, apenas um aumento gradual da taxa de desemprego.
Os mercados ficarão surpresos com o fato de o aperto durar um pouco mais do que eles estão esperando. Ao mesmo tempo, acho que o Fed ficará surpreso com a desaceleração que veremos até o final do ano, numa queda provavelmente maior do que eles gostariam. Nesse cenário, vejo eles começando a reduzir as taxas de juros ainda em 2023, na segunda metade do ano.
Qual deverá ser o pico da taxa de juros?
O Fed deve parar com os juros na faixa entre 5% e 5,25%. Eles vão manter essa taxa até o mercado de trabalho esfriar. Aí poderemos ver uma redução dos juros. Esse é o meu palpite.
Na realidade, é muito difícil calibrar a taxa de juros. A pandemia tornou ainda mais difícil determinar exatamente o que está acontecendo na economia.
Normalmente, se as pessoas começarem a apertar o cinto, você verá que o setor de serviços terá dificuldades. Mas eles ainda estão com dificuldades, na verdade, para contratar funcionários. Moro em Boston. Restaurantes perto do MIT, onde trabalho atualmente, têm áreas fechadas porque não encontram pessoas para trabalhar como no atendimento e na cozinha.
A boa notícia é que os trabalhadores com salários mais baixos estão recebendo aumentos superiores aos daqueles com rendas mais elevadas, algo que ajuda a reduzir a desigualdade. Mas o desemprego precisa aumentar para a inflação perder força. Embora muitas empresas de tecnologia tenham demitido funcionários recentemente, essas pessoas conseguem empregos rapidamente. Ainda há muita pressão salarial.
O que significa, em termos práticos, uma recessão leve?
Provavelmente dois trimestres de PIB negativo, com a taxa de desemprego acima do que você acha que é o pleno emprego para a economia atual. Segundo o Fed, essa taxa seria de 4%. Espero o desemprego subindo para 5,5%.
O mercado acionário já precifica esse cenário ou poderemos ver uma nova correção?
Se os juros subirem de fato um pouco além do que o mercado espera, eu ficaria um pouco nervoso nos próximos seis meses. Mas na medida em que o Fed der início à flexibilização, o que espero que aconteça na segunda metade do ano, o cenário poderá ficar mais favorável para as ações.
O senhor esteve no Fed até 2021 e por mais de uma década foi um dos presidentes regionais com direito a voto no Federal Open Market Committee (Fomc, o Copom do Fed). Pela sua vasta experiência na instituição, qual sua avaliação sobre as razões que levaram o Fed a ser surpreendido pela alta na inflação?
Em primeiro lugar, não tivemos um choque de oferta, mas uma série de choques de oferta. A Covid teve várias ondas, em diferentes regiões dos EUA e do mundo, em momentos distintos. Ninguém estava prevendo a guerra na Ucrânia. Houve, portanto, uma sequência de eventos inesperados.
Há, porém, um segundo elemento a ser observado. A maioria dos problemas que tivemos com a política monetária entre 2000 e 2019 foi que não conseguimos chegar a uma inflação de 2%. As pessoas começaram a pensar que seria improvável ver a inflação ficar acima de 2%. Todos começaram a ajustar seus modelos prevendo que ficaríamos em torno de 2%.
A última vez que tivemos inflação realmente alta foi na década de 1970. Se você observar os modelos da maioria dos economistas, as suas séries começam depois de 1970. Então não foi um erro exclusivo do Fed, mas dos analistas do setor privado também.
Por fim, o Fed dispõe de muitas informações a respeito dos efeitos na economia de um aperto nos juros. Mas não há, em seus modelos, experiências de pandemia e crise na saúde pública.
Superado o atual surto de alta nos preços, acredita que veremos novamente inflação e juros baixos como no período anterior à pandemia?
Difícil prever. Nos EUA, ainda há escassez de mão de obra em muitos setores. Vimos uma queda na participação na força de trabalho, em especial das pessoas com mais de 55 anos. Não tenho certeza se essa parcela da população voltará ao mercado.
Além disso, houve uma queda na imigração. O mercado de trabalho pode ter mudado de maneira significativa.
Em parte, há efeitos positivos nisso. Se você for para a Europa, os garçons têm um salário digno. Há muitos garçons nos EUA que não recebem um salário digno.
Mas pode estar ocorrendo uma mudança no equilíbrio entre empregadores e funcionários de uma forma que, com o aumento do custo da mão de obra, poderá dificultar o retorno a um ambiente de taxas de juros muito baixas.
Outro ponto é que os gastos do governo nos últimos três anos nos EUA cresceram muito rapidamente. O governo estava tão preocupado com os efeitos da pandemia que inundou a economia com estímulos fiscais.
Além disso, muitas empresas foram capazes de refinanciar suas dívidas no início da pandemia, pagando juros menores. Então acho que vai demorar um pouco para ver qual é a nova realidade.
Não acho, porém, que voltaremos às taxas de juros extremamente baixas, mas definitivamente veremos taxas muito mais baixas do que veremos ao longo deste ano.
Se o seu cenário estiver correto, quais os efeitos esperados para o Brasil?
Não sou um especialista em economia brasileira. Mas, se os EUA entrarem em recessão, isso não é uma boa notícia para a economia mundial. Se China, EUA e Europa tiverem uma desaceleração coordenada, será má notícia para os mercados emergentes.
Quando os mercados perceberem que o Fed vai aumentar as taxas para 5%-5,25%, o dólar não continuará a se enfraquecer como nos últimos meses. Isso também não é uma boa notícia para os mercados emergentes, incluindo o Brasil.
Os próximos seis meses podem ser bastante complicados. Mas espero que os bancos centrais comecem a ver uma melhora nos números de inflação, deverá haver um alívio da política monetária, favorecendo a economia dos mercados emergentes. Vejo um primeiro semestre acidentado e talvez um segundo semestre melhor.