Voltando para casa em uma noite de chuva, Alma Imhoff, uma professora de Filosofia da Universidade Yale, se alarma ao encontrar Maggie Resnik, sua aluna, à sua espera no corredor do prédio. Convida a jovem a entrar em seu apartamento, mas ela recusa: quer contar algo muito grave e muito delicado, e teme que o marido de Alma possa ouvi-la. As duas se sentam nos degraus da escada.
O ambiente escuro dará o tom do diálogo – e do filme: Depois da Caçada (After the Hunt), em cartaz nos cinemas, desenrola-se sob a dupla sombra da dúvida e da ambiguidade.
Sempre rigorosa e até fria, Alma (Julia Roberts, em uma de suas melhores atuações recentes) recebe com certa reticência a denúncia bombástica que Maggie (Ayo Edebiri, da série The Bear), sua aluna dileta, vem lhe trazer: ela teria sido estuprada por Henrik Gibson (Andrew Garfield), um professor bonitão e carismático que todos chamam de Hank.
A palavra “estupro”, na verdade, nem chega a ser pronunciada. Maggie conta que Hank a acompanhou até o apartamento dela depois que os dois saíram de uma festa na casa de Alma. A partir daí, o relato é cheio de lacunas.
“Ele ultrapassou a linha,” Maggie responde quando Alma a pressiona para que seja mais objetiva. “Ele me atacou,” diz ainda, e vai embora pouco depois.
Colegas no departamento de Filosofia, Alma e Hank esperam conquistar em breve a prestigiosa posição de professor titular – e é bem possível que o título só seja conferido a um deles. Apesar da rivalidade, os dois são bons amigos.
Mais que amigos, talvez? Momentos antes da tensa conversa com Maggie na escada escura, Alma batia um papo animado com Hank no balcão de um bar. A cena deixa transpirar uma intimidade quase sensual entre os dois filósofos. Mas o diretor italiano Luca Guadagnino, sempre sutil, só oferece sugestões e insinuações. Neste filme, não dá para ter certeza de nada.
A dúvida angustiante que atravessa a história é construída sobre as atitudes dúbias dos principais implicados. É fácil acreditar que Hank tenha mesmo “cruzado a linha”: professor que faz o gênero descolado, ele ostenta uma masculinidade ao mesmo tempo sedutora e impositiva. E, claro, cometeu o erro fatal de entrar na casa de uma aluna.
Do lado da acusação, temos Maggie, que é evasiva na hora de relatar os fatos, mas incisiva quando pede que a cautelosa Alma lhe preste apoio explícito. Ela teria boas razões para fazer uma denúncia falsa: Hank havia lido parte da dissertação com que Maggie esperava conseguir seu PhD – e flagrara um plágio descarado de Homo sacer, livro do filósofo italiano Giorgio Agamben.
(A propósito: não é lá muito verossímil que uma estudante de pós-graduação seja ingênua a ponto de plagiar a obra publicada de um autor vivo e bem conhecido no meio acadêmico – mas esta é uma falha menor do filme).
Como é comum nesses casos, questões étnicas e de gênero têm seu peso. O acusado é um homem branco e hetero, e a acusadora é uma jovem negra e gay. Ironicamente, é Hank que tem origem pobre: Maggie vem de uma família rica que faz generosas doações a Yale.
Depois da Caçada retrata a vida acadêmica – em particular, nos departamentos de humanidades – como uma competição de vaidades na qual sai vitorioso quem melhor mobiliza as bandeiras militantes do momento em favor de seus interesses particulares.
Não por acaso, o único personagem sobre cuja honestidade não paira dúvida é um intelectual que vive fora do mundo acadêmico: o psicanalista Frederik, marido de Alma. Observador perspicaz, ele percebe certos elementos perversos na admiração quase idólatra que Maggie devota a sua esposa.
Ele também sabe que Alma não o ama. Consola-se cozinhando pratos requintados, ouvindo música a todo volume – o compositor americano John Adams é seu favorito – e vendo pornografia no computador. O excelente Michael Stuhlbarg – que interpretou outro personagem reprimido e triste em um filme anterior de Guadagnino, Me Chame pelo seu Nome – confere uma dignidade sóbria ao pobre Fred.
Indiferente ao marido, Alma tenta navegar pela tempestade quando as acusações de Maggie se tornam públicas, mas acaba engolfada pela onda de repercussões e retaliações desencadeada pelo escândalo. Ao contrário do que seria de esperar, a partir daí o impacto crítico e a tensão psicológica do filme se esvanecem.
Os diálogos que até então ocultavam sentimentos hostis sob citações de Kierkegaard e Foucault se tornam expositivos, banais. E um segredo do passado de Alma que Maggie descobriu por acaso acaba desviando a narrativa para uma vereda estéril.
Ainda assim, este é um filme que, sem proselitismo, bate em um nervo sensível da sociedade americana: a cultura militante que domina boa parte do ensino superior americano, sempre pronta para julgamentos sumários e autos-de-fé ideológicos.
Numa entrevista à Vanity Fair, Guadagnino disse que a cena final do filme, que tem lugar anos depois dos eventos centrais, carrega uma crítica à volta de Donald Trump ao poder. Mas essa é uma interpretação muito forçada.
Depois da Caçada nos convida antes a considerar o contexto das intervenções que o governo Trump vem fazendo, com mão pesada, nas universidades. Sim, elas são agressivas, autoritárias, inconstitucionais – mas as universidades deram a Trump bons pretextos.











