Adrianna Catena vem de uma das famílias icônicas do mundo do vinho na Argentina e tem doutorado em História por Oxford. Já Alejandro Vigil foi um jovem rebelde que acabou se tornando enólogo-chefe da Bodega Catena Zapata.
 
Essas duas personalidades tão distintas decidiram se juntar para fazer um novo vinho que misturasse tradição e irreverência, história e desapego pelas velhas regras. Foi assim que surgiu um dos projetos mais bem sucedidos — responsável por um dos melhores vinhos argentinos dos últimos anos — do novo cenário vinícola da Argentina: a Bodega El Enemigo.

A conversa sobre o novo projeto aconteceu em meio a um passeio pelas ruas de Londres, numa noite de névoa sobre o rio Tâmisa. Não poderia haver ocasião mais apropriada para se falar sobre vinho: o pai de Adrianna, Nicolás, acabara de receber o prêmio de Homem do Ano da prestigiosa revista britânica Decanter. 

Durante a caminhada, Adrianna contava a Virgil sobre o grande incêndio de 1666, uma das maiores tragédias da história de Londres. Mas o ponto alto da conversa foi quando os dois começaram a pensar num projeto conjunto, paralelo à Catena Zapata, que lhes permitisse inovar e expressar uma nova visão sobre o mundo do vinho.

A nova visão começava com a escolha da uva para ser a grande estrela da vinícola. Ao contrário do que se imaginaria de um projeto localizado em Mendoza, onde a cepa Malbec reina de forma inconteste, Adrianna e Virgil decidiram privilegiar a Cabernet Franc, uma uva mais conhecida por fazer parte de blends (boa parte dos vinhos disponíveis no mercado, inclusive alguns dos melhores do mundo, é resultado de misturas de uvas, os blends).

A Cabernet Franc é muito conhecida por entrar no blend tradicional dos vinhos Bordeaux, junto principalmente com Cabernet Sauvignon e Merlot. É considerada mais leve do que essas duas e contribui com sutileza para as misturas. 

Na Bodega El Enemigo, a Cabernet Franc brilha como a protagonista de sua linha top de vinhos, o Gran Enemigo. 

Como acontece com frequência no mercado, o blend de uvas da linha top da vinícola muda a cada ano, de acordo com o clima e a qualidade das safras. Mas, para que se tenha uma ideia da importância da Cabernet Franc, o Gran Enemigo Agrelo Single Vineyard 2010 é feito com 85% da cepa, complementado por 15% de Malbec. Nesse caso, o vinho pode ser considerado um varietal, por contar com um percentual muito superior de apenas uma uva.

A ousadia deu certo, posso garantir. O Gran Enemigo Gualtallary Single Vineyard 2013 (com 85% de Cabernet Franc) recebeu 100 pontos de Robert Parker, o crítico mais influente do mundo. Essa é a maior nota já dada por Parker a um varietal de Cabernet Franc.

“Esse vinho é intenso e poderoso, mas, ao mesmo tempo, traz uma certa leveza no paladar (…). Ele faz lembrar o meu Bordeaux favorito, o Lafleur, de Pomerol. (…) É definitivamente um vinho de classe mundial e que merece ser guardado, porque vai ficar ainda mais complexo na garrafa. A única coisa que poderia melhorá-lo é se ele viesse em garrafas Magnum, com o dobro do tamanho”, escreveu Parker. Vale ressaltar que as safras anteriores desse vinho já haviam recebido notas superiores a 97 do crítico norte-americano.

James Suckling — o meu crítico preferido — deu 99 pontos para o Gran Enemigo Gualtallary 2013 e disse: “Este é um vinho fabuloso com notas de amoras, cogumelos escuros, mirtilo e pimenta branca. Encorpado, com taninos finos e profundidade fantástica. Continua na boca por minutos. Um tinto magnífico”.

O problema é que, como quase tudo que é bom na vida, esses vinhos são caros. No Brasil, a linha Gran Enemigo tem preços superiores a R$ 600 a garrafa, dependendo da safra e do produto (além do Gualtallary, existem também os Gran Enemigo, Gran Enemigo Agrelo etc.). Numa eventual viagem à Argentina, quando a pandemia permitir, é possível encontrar preços bem mais em conta.

A boa notícia é que a vinícola possui ainda uma segunda linha, a El Enemigo, com vinhos bem interessantes e menos caros. Além do varietal de Cabernet Franc, uma recomendação é o El Enemigo Syrah/Viognier, por sua combinação inusitada – típica do Norte do Rhône – de uma cepa tinta com outra branca.

Quem tiver a oportunidade de provar os Gran Enemigo não irá se arrepender. Eles são bem diferentes do típico vinho argentino (em geral, com base em Malbec) e surpreendem por, como disse Parker, combinar leveza e profundidade.

 
Flávio Ribeiro de Castro é jornalista e ama comida, vinhos e charutos.