Num ano que promete uma safra robusta de IPOs, empresas e investidores ainda sofrem com a ‘lei do silêncio’ imposta pela CVM, pródiga em admoestar (e multar) executivos por dar declarações em meio à falta de clareza sobre o que pode ser dito ou não.

O tal ‘período de silêncio’ foi pensado para evitar que o otimismo das empresas e dos coordenadores da oferta faça o investidor desconsiderar os riscos envolvidos — e ele acabe sendo prejudicado. A orientação da CVM é que, em suas manifestações públicas, os envolvidos na oferta se atenham ao que está no prospecto.  

Mas ao longo dos anos, a falta de clareza sobre esta orientação gerou uma cultura do medo em relação ao regulador, tornou o mercado pouco transparente e deu aos investidores institucionais uma vantagem indevida sobre o investidor pessoa física.

Trata-se de uma burocracia confusa, paternalista, que presta um desserviço ao mercado e faz das superintendências de Registros (SRE) e de Relações com Empresas (SEP) os setores mais ativos da CVM — e mais temidos pelas empresas.

O silêncio imposto pela regulação antes de uma oferta de ações está previsto no inciso IV do artigo 48 da instrução CVM 400: emissora, ofertante e instituições intermediárias devem “abster-se de se manifestar na mídia sobre a oferta ou ofertante até a divulgação do anúncio de encerramento de distribuição”. 

O parágrafo primeiro, no entanto, traz uma observação importante, que as empresas habitualmente ignoram: “a vedação prevista no inciso IV não se aplica às informações habitualmente divulgadas no curso normal das atividades da emissora”. Ou seja, é possível falar com a imprensa e responder perguntas, desde que não ligadas diretamente à oferta.  As companhias, no entanto, dizem ter dificuldade em saber o que a CVM considera ‘o curso normal das atividades’, algo que a autarquia nunca definiu explicitamente. 

“A regra é muito ampla e há diversos casos de punição sem uma lógica muito clara,” diz o diretor de RI de uma companhia listada. “Como precaução, as empresas se fecham”.

De fato, os casos de ofertas suspensas por declarações dadas à imprensa não são raros, e o rigor adotado pela CVM especialmente na safra de IPOs dos anos 2000 reforça o temor das empresas.

Um caso emblemático foi o da Cosan, em 2005. Na véspera do encerramento das reservas de compra, a CVM suspendeu o IPO da companhia por conta de uma matéria publicada na revista Dinheiro Rural, que continha declarações dadas por executivos da companhia e o coordenador Morgan Stanley.

A reportagem, no entanto, esclarecia desde o início que as informações tinham sido obtidas durante evento de divulgação da oferta de ações para investidores. Depois de uma suspensão de mais de 15 dias, a operação foi retomada.

Em outro caso, a punição impediu o IPO porque, durante a suspensão, a janela de mercado simplesmente fechou. Em julho de 2007, a CVM suspendeu temporariamente a oferta da empresa de shopping centers Aliansce: uma matéria publicada pela Gazeta Mercantil descrevia as perspectivas para a empresa. Neste ínterim, estourou a crise financeira global, e a empresa só conseguiu listar na Bolsa em 2010.

Pior: a mordaça não é removida quando toca o sino do primeiro dia de negociação. Ela vale até o anúncio de encerramento da operação, após a colocação do lote suplementar, que pode ocorrer até 30 dias depois – e é aí que muitos executivos escorregam.

Eike Batista não se conteve e deu declarações entusiasmadas no primeiro dia de negociação de OGX, em 2008. Teve que pagar R$ 50 mil para fechar um termo de compromisso com a CVM.  André Esteves fez o mesmo no IPO do BTG, em 2012, e fechou um termo com o regulador em troca de “licenças do IBM SPSS Statistics for Windows, garantindo treinamento para 12 pessoas e manutenção dos softwares por um período de 48 meses.”  Ok…

Por mais nobre que seja a intenção, ao tentar proteger demais o investidor, o regulador cria uma assimetria injusta e desnecessária — e acaba prejudicando quem ele quer proteger.

Funciona assim: os grandes investidores institucionais têm acesso direto aos executivos da empresa emissora e aos bancos coordenadores durante os roadshows, geralmente almoços ou cafés da manhã em hotéis. Nestas ocasiões, e em conversas individuais organizadas pelos bancos, eles podem fazer um escrutínio detalhado do histórico e das perspectivas do negócio.

Já os pequenos gestores (que não têm grande relacionamento comercial com os bancos coordenadores) e investidores de varejo ficam no escuro, na dependência do que consta no prospecto: um calhamaço impenetrável, escrito num juridiquês hostil.  A imprensa, que poderia disseminar amplamente o que é dito nos eventos do roadshow, também não tem acesso — apesar da oferta ser designada como ‘pública’. 

“Para superar essa zona cinzenta, em vez de impedir as empresas de falarem, a CVM poderia fazer o contrário: dar transparência total”, afirma Reginaldo Alexandre, que presidiu a Associação dos Profissionais do Mercado de Capitais (Apimec) até o fim de 2016 e atua como conselheiro fiscal em diversas empresas, entre elas a Petrobras.

A proposta de Reginaldo é simples: concentrar todos os materiais — incluindo vídeos do roadshow — em um só lugar, com acesso amplo.

Se a CVM julgar que as declarações ou projeções estão fora do que foi divulgado oficialmente, pediria esclarecimentos, como já faz hoje com quem é listado, argumenta.

A próxima safra de IPOs não deveria ter a marca da mordaça. A CVM deveria ser proativa e esclarecer o que espera de seus regulados. 

O presidente Leonardo Pereira, cuja gestão fez avanços palpáveis, deveria atacar este problema em 2017. Com anos de experiência no mundo corporativo, Leonardo será capaz de entender a ironia que incomoda seus antigos pares: justamente no momento em que despertam mais interesse e sua obrigação de transparência é mais sensível, as empresas se sentem impedidas de dar entrevistas.