No canto da casa preferido da chef Luana Sabino, 29, lê-se em um panô vermelho estendido: besar lento, hablar claro, amar fuerte y reír de verdad. O tecido está preso em uma estante pelo peso de livros de gastronomia – entre eles, dois calhamaços sobre mezcal, a bebida destilada típica do México e feita a partir de mais de 200 tipos de agave.

Já em seu restaurante Metzi, o mexicano mais premiado do Brasil, onde faz uma cozinha estética, de sabores complexos, Luana às vezes gosta de ficar perto do lixo para observar tudo que é descartado.

Para que não haja desperdício, provoca sua criatividade para fazer o máximo aproveitamento possível de todos os insumos. Elabora pratos que partem de um receituário latino ancestral e são construídos a partir de uma gramática brasileira, com produtos nativos.

07 24 Luana Sabino ok

Embora Luana tenha nascido e crescido em São Paulo, na Freguesia do Ó, um bairro com ar interiorano que orbita em torno de uma igreja, sua paixão pelo cultura mexicana foi despertada depois de uma temporada em Nova York. Ela trabalhou por dois anos no Cosme, de Enrique Olvera, um dos chefs mexicanos mais premiados do mundo.

À época, fugia de uma depressão em São Paulo. Mandou currículo para os restaurantes mais estrelados de Manhattan e arredores arbitrariamente e foi parar nessa cozinha mexicana, que ocupa um subsolo onde outrora havia funcionado um clube de strip tease – e mantém até hoje certa aura desse passado.

Uma equipe de seis cozinheiros atendia 300 pessoas por noite. “Mas era leve, a gente ouvia música, dançava e se divertia,” diz a chef cuja missão inaugural foi separar 120 ingredientes para o preparo de um mole negro, um molho denso, rico em especiarias, símbolo da cozinha mexicana desde os astecas.

“Recebi uma lista enorme, não falava bem inglês e não podia nem pesquisar no Google, porque a gente estava no subterrâneo e não tinha internet,” relembra Luana, que recebeu ajuda dos cozinheiros e hoje imprime em sua própria cozinha essa dinâmica de cooperação – além da sonoplastia, com música latina.

Foi no Cosme que conheceu seu ex-marido e sócio Eduardo Ortiz, um mexicano de Oaxaca, que largou tudo para abrir com ela um negócio em São Paulo. Metzi, na mitologia asteca, é a deusa da lua. “Gostei disso porque meu apelido desde criança é Lua.” O nome também deriva da palavra México em nahuatl, uma língua indígena mesoamericana.

Sem legenda 2

Seu entrosamento com essa cultura latina foi tão intenso que, hoje, é como se Luana tivesse uma “alma mexicana”. É a única brasileira, aliás, formada como sommelière de mezcal, essa bebida que ela reconhece como o primeiro destilado do mundo. “Os maias já faziam um líquido fermentado e alcóolico de agave e serviam como oferenda aos deuses.”

A especialização que fez com profissionais mexicanos a levou a compreender por que se trata de uma bebida cara e específica. A agave mais simples demora pelo menos 12 anos para ficar no ponto para ser usada no processo de fabricação do destilado, que tem denominação de origem e está restrito a apenas 12 localidades do México.

Luana produziu seu próprio mezcal a partir de um blend de agaves – uma mais cítrica, outra mais floral. “Cortamos a agave quando a planta está com bastante açúcar. Quando fizemos a destilação, ficou parecendo um licor, bem aromático.”

É possível prová-lo no Metzi, restaurante que Luana ergueu com Ortiz na pandemia. Com apenas R$ 300 mil para fazer a reforma e montar a cozinha e o salão, alugaram a casa em fevereiro de 2020. Tudo fechou em março. “Pintei paredes, o Eduardo soldou alguns fios, meu pai construiu as mesas. Fizemos tudo sozinhos.”

Prestes a completar cinco anos, o Metzi hoje é reconhecido pelo guia Michelin e integra a lista dos melhores restaurantes da América Latina, segundo o World’s 50 Best Restaurants, o Oscar da gastronomia.  

Há dois anos, Luana conduz paralelamente com Ortiz uma casa mais informal, o Atzi, cujo cardápio concentra-se nos tacos, um espelho da comida de rua mexicana.

“A gente sempre quis mostrar a comida do México para os brasileiros. É besteira achar que íamos fazer isso com o Metzi, que é um restaurante menos acessível. Por isso abrimos o Atzi, qualquer pessoa pode ir e sair satisfeito por R$ 40.”

O clássico taco el pastor, feito em um espeto em contato direto com o fogo, combina carne de porco com uma marinada de pimentas, cebola, coentro e abacaxi. Pode-se complementar, ao gosto do freguês, com salsas que ficam disponíveis no balcão.

No Metzi, o preparo mais simbólico é uma tostada de milho sobre a qual se acomodam purê de avocado, maionese de chintextle (uma pasta defumada feita com chiles secos e cabeça de camarão), carpaccio de polvo e ovas de truta.

Embora haja renovação do cardápio a cada temporada, essa tostada de polvo permanece fixa. Sua receita foi testada na pandemia, com o restaurante ainda em obras, num espaço de eventos do pai de Luana no bairro em que ela cresceu, num apartamento em cima da padaria de seu avô português. “Essa tostada traduz o Metzi. Valoriza as pimentas, o milho crioulo brasileiro, as frutas brasileiras, as sobras dos pescados e as técnicas ancestrais,” diz a chef, que já passou por restaurantes importantes desde o comecinho da faculdade, como o Arturito, de Paola Carosella, e o Tuju, de Ivan Ralston.

Sem legenda 1

Para inserir as receitas ancestrais no léxico particular que criaram, Luana e Ortiz adaptaram também o mole amarelo, feito originalmente com uma pimenta mexicana indisponível no Brasil. “Para dar a cor amarelada, a gente frita os ingredientes no dendê,” disse Luana, que combina nessa receita castanhas, banana-da-terra, pimentas e especiarias. “Nenhum prato entra no menu sem a aprovação de nós dois. Nosso trabalho é complementar. Um sempre vê alguma coisa que faz o preparo do outro dar um salto.”

Inspirada num bolo úmido de cupuaçu, receita de sua avó, Luana criou uma sobremesa autoral, que faz referência ao clássico tres leches latino, cuja base é um pão de ló aerado embebido em uma calda de leite. “Fica como um bolo de coco gelado.”

Para lhe dar uma aparência mais bem acabada, no Metzi ela o cobre com uma glaçagem de chocolate branco, que faz uma crosta bem lisa no bolo, e o enriquece com um “cremoso”, como se diz no México, um creme de leite gelado com queijo e cupuaçu.

Na infância, Luana brincava de ioiô, pião e bola de gude na rua. O que mais gostava, no entanto, era chegar da escola e ir direto para a padaria de seu avô preparar um sanduíche de calabresa na chapa escondida. Logo pela manhã, já era inebriada pelo cheiro de pão que invadia o apartamento.

Afeiçoou-se desde cedo pela cozinha como forma de agradar aos outros, mas um teste vocacional a fez desviar da gastronomia. Cursou biomedicina, mas apenas um ano e meio. Em uma pausa para refletir qual caminho tomar, Luana passou a cozinhar em casa, uma comida do cotidiano. Estar nesse universo a ajudou, em sua avaliação, a superar os transtornos alimentares que sofria.

“Desde meus 12 anos, tive essa briga com a comida. Fui diagnosticada com anorexia e bulimia. Cheguei a pesar 40 quilos e desenvolvi uma rejeição pelos alimentos.”

Ao entrar na faculdade de gastronomia, “meu interesse pela cozinha me ajudou a ter uma relação saudável com o alimento e a me tornar uma pessoa melhor,” disse Luana, que também credita ao trabalho intenso em restaurantes a superação de crises depressivas. “A cozinha já me salvou várias vezes.”