O cearense Diego Freire não gosta de sujar louça em excesso quando cozinha para a família em seu tempo livre: escolhe receitas de uma panela só, que vão ao centro da mesa para serem compartilhadas.
Geralmente, elege uma macarronada ou um arroz enriquecido com carne de sol, nata e queijo coalho, elementos cardinais da culinária de seu Estado. “Quando vou cozinhar, a notícia se espalha rápido, e a família é grande.”
De uma família de comerciantes, Diego tornou-se chef profissional bem jovem, à revelia de pai e mãe, que pararam de estudar cedo e desejavam para o filho caçula algo que lhe desse mais segurança. Em pouco tempo de estrada, porém, ganhou projeção em Fortaleza e hoje é um nome que reluz no setor.
Com apenas 28 anos, já foi professor do Senac, onde concluiu um curso técnico de cozinha, que fez concomitantemente com a faculdade de gastronomia, já passou por restaurantes com recursos tecnológicos sofisticados, e é sócio de dois negócios de sucesso: uma pizzaria e um boteco com peixes e frutos do mar frescos.
Esse último, o Muvuco, cujo nome é uma gíria de pescadores para se referir aos lugares nos quais os peixes frescos se escondem, atrás das pedras e dos corais, tem ar informal, embora sirva uma cozinha bem acabada.
A Z-Boys Pizza, que nasceu antes, foi batizada com o nome do grupo mais relevante de surfistas e skatistas da Califórnia dos anos 1970, em homenagem a um dos sócios, skatista. “A gente está em frente à praia de Iracema, que lembra um pouco Santa Mônica, onde eles surfavam, guardadas as devidas proporções,” Diego disse ao Brazil Journal.
A massa, inspirada na tradição napolitana, aceita algumas intervenções, como a borda um pouco mais baixa (como a nova-iorquina), e coberturas mais inventivas, que podem receber maionese, picles e ervas frescas.
Diego recorda a história da pizza mais vendida, criada pelo gerente, Wesley Rocha, que começou na empresa como motoboy e hoje sabe um pouco de tudo: hospitalidade, caixa, cozinha.
Para desenvolver sua versão de cobertura, Wesley usou o que tinha à mão em casa. O resultado foi uma pizza com molho branco, muçarela, calabresa e maionese temperada, finalizada com uma farofinha de farinha panko com limão-siciliano. “Essa é a pizza Cria. O Wesley mora numa comunidade, e ‘cria’ é uma gíria de lá, ‘cria da favela’,” explica Diego.
O Muvuco foi pioneiro em Fortaleza a usar peixes submetidos a boas práticas de abate, como o ikejime, um conjunto de providências que se toma a bordo para garantir a qualidade do pescado. O próprio Diego aprendeu esses ensinamentos na Ilhabela, no litoral norte de São Paulo, num curso de Rodolfo Vilar, do Projeto A.Mar, um dos maiores experts no assunto do Brasil.
“A gente tem uma parceria local com um pescador que se chama Adriano, mas o apelido é Banana. Ele se propôs a fazer o ikejime e sai de jangada para pescar. Recebemos o peixe muito rápido, uns 15 minutos depois da pesca. Peixe mais fresco, impossível.”
Diego conta que um dia foi pescar na jangada com o Banana para praticar os rituais que aprendeu. Foi um fracasso. O barco balançava tanto com o vento forte que ele ficou mareado e não cumpriu a missão. “Foi bem engraçado, ficamos muito enjoados e ninguém conseguiu aplicar o ikejime.”
Há um certo romantismo na imagem de que Diego começou a cozinhar ao lado de vó e vô, ainda pequeno. Ele diz, no entanto, que não se trata de um “clichê do chef de cozinha”. “Eu realmente gostava de estar por perto. Sempre gostei de servir as pessoas e me sentir útil.”
Seu avô, que veio do Rio Grande do Norte para abrir um comércio de couro em Fortaleza, tinha predileção pelas marinadas. Comprava uma banda de carneiro e fazia uma marinada para temperá-la antes de submetê-la ao cozimento lento. Diego o acompanhava nesse processo.
Sua avó, também afeita à cozinha, ergueu um comércio de bijuterias com peças que um dos filhos trazia do Paraguai. Chegou a Fortaleza sem aviso prévio. “Ela veio do Rio Grande do Norte sem avisar meu avô, que já estava aqui. Colocou os filhos dentro de uma Kombi, e aqui começaram uma vida.”
Improvisou sua primeira loja no escritório do marido, no qual atraía as mulheres dos sapateiros que iam ao local comprar couro. Hoje, a Nina Bijoux, cujo nome homenageia a própria fundadora, Severina, tornou-se a maior loja de bijuterias de Fortaleza, com grande prestígio em três pontos físicos.
O pai de Diego, que parou de estudar no primeiro ou no segundo ano, começou a trabalhar cedo e também enveredou pelo comércio. Seguiu o caminho do pai, que vendia artigos de cama, mesa e banho para galegos. “Você sabe o que é galego? É um vendedor de rua, que passa pelos bairros com uma carrocinha e vende em prestação, como um crediário. Isso é muito comum aqui no Nordeste.”
Esse tino para o comércio fez com que pai e mãe ficassem ausentes de casa no dia a dia, e isso estimulou Diego a ir para a cozinha. “Eles saíam às oito da manhã e voltavam às oito da noite. Eu acabava cozinhando, sempre tive mais iniciativa que meus irmãos para isso,” conta o young chef, que preparava receitas como tapioca e cuscuz, imperativos no cotidiano cearense.
O cuscuz ele umedece com água de um dia para o outro, segundo recomendação de sua mãe. “Hidrato até ficar com uma textura de areia molhada, sabe?” Depois, faz o cozimento no vapor na cuscuzeira, “a panela do nordestino,” brinca.
Esse hábito de cozinhar em casa, com autonomia, despertou-lhe o desejo de se tornar chef. Seu encantamento pela área de construção, porém, causou-lhe um pouco de confusão quando acabou a escola e tinha de decidir qual rumo seguir. Engenheiro ou cozinheiro?
Diego acompanhava obras que seu pai administrava. Observava o trabalho dos eletricistas, dos encanadores e gesseiros para se apropriar dos detalhes do processo de mudança dos ambientes. “Escolhi ir pelo lado do amor, que, pra mim, é a cozinha.”
Entrou no curso técnico aos 17 anos e acumulou base prática. A faculdade foi complementar, mais concentrada na teoria. Muito rapidamente foi contratado pelo Senac como competidor para participar da Copa do Mundo das Profissões.
Com isso teve a oportunidade de ser treinado ao longo de um ano, oito horas por dia, por um time de primeira linha, que incluía o confeiteiro Lucas Corazza, apresentador do programa Que Seja Doce, da GNT. Repetia à exaustão os cortes tradicionais, os variados cozimentos, a limpeza e a desossa de animais. Praticava receitas clássicas e, mais tarde, receitas inventivas, com o tempo cronometrado no relógio.
Quando se tornou monitor na mesma instituição, preparava os insumos para que os mentores tivessem tudo à mão para dar aulas que, mais tarde, ele mesmo assumiu como professor.
Sua primeira experiência em uma cozinha profissional foi no Mayú, o restaurante-escola do Senac Reference, um modelo inovador de educação profissional, com ambientes pedagógicos modernos e cursos que abrangem diversas áreas.
No Mayú, que no idioma tremembé, povo indígena do Ceará, significa comer, Diego teve de aprender a mexer com os aparatos mais tecnológicos – pacojet, thermomix, desidratador e afins – e liderou a equipe da cozinha, sob supervisão de Ivan Prado, o chef-executivo que também lhe dera aula e tem grande visibilidade em Fortaleza.
Diego se recorda de um cordeiro que fez para submeter à diretoria da escola antes de incluí-lo no cardápio. Ninguém aprovou. Serviu o cordeiro ao molho rôti na companhia de um purê batata-doce moldado e frito, polvilhado com pó de beterraba. O veredito: um prato desequilibrado, com sabor excessivamente terroso.
Entre os acertos de Diego ao longo da carreira está a panelada que fez para 900 pessoas na Câmara de Vereadores na Semana Regional da Gastronomia. Foi preciso subir em um banquinho para mexer a panela, que estava mais alta que ele, na qual preparava o cozido típico do Nordeste, cujo eixo são miúdos de boi ou de carneiro, bucho, tripa e mocotó.
É o carro-chefe do Muvuco, seu boteco com pratos de alumínio, copo americano, cerveja gelada, cachaça e samba, combina peixe e tapioca. Para abrir o bar, os sócios viajaram por muitas praias do litoral cearense para fazer pesquisa, conhecer gente, pescadores e marisqueiras.
“Conhecemos um pescador, o Roniele, na praia da Sabiaguaba, onde o mar encontra o rio, que é um líder comunitário indígena que preserva com todas as forças aquela área de duna, mangue e caatinga.”
Roniele faz mergulho de apneia e conduz uma trilha ecológica nessa praia que, “na boca de rico, é pobre”. É uma praia esquecida, cuja história ele recupera e valoriza nos passeios. “Conta a história do mangue e acaba a trilha na casa dele, uma casa de pescador, super humilde, onde serve um peixe com tapioca. Ele faz o peixe na churrasqueira e a tapioca num fogãozinho. Molha a tapioca no leite de coco que ele tira do coco que pega no coqueiro e serve numa folha de bananeira.”
Foi daí que Diego se inspirou para servir em seu boteco um preparo que homenageia o líder indígena. O chef usa geralmente o peixe serra, que prepara na brasa, e o serve com uma tapioca com manteiga e sal. “Ela vem cortada ao meio para que o cliente consiga recheá-la com um pedacinho de peixe.”
Para complementar, peixe e tapioca são servidos na companhia de uma saladinha de coco fresco ralado, temperado com cebola-roxa, limão, coentro e cebolinha. “Você coloca tudo isso na tapioca, enrola e come com as mãos, para se lambuzar.”
Diego dedica 100% do seu tempo de trabalho à cozinha. Para aguentar o tranco, corre regularmente e faz academia. “Vou forçado,” brinca. “Cozinheiro precisa de preparo, a gente fica muito tempo em pé.”