Outro dia fiz um comentário casual, descompromissado, referindo-me ao idealismo de Dom Quixote. Meu interlocutor, ainda universitário, não tinha ideia de quem eu falava.
Pouco depois, numa outra conversa, mencionei o fanatismo de Simão Bacamarte, de O Alienista, a obra genial de Machado de Assis. Meu ouvinte, que contava com pouco mais de vinte anos, também não tinha noção de quem fosse. Logo adiante, para dar um exemplo de lirismo, citei José Arcádio Buendía, de Cem Anos de Solidão. Mais uma vez, falava com uma pessoa nascida depois do ano 2000, e o destinatário do meu aparte ignorava a alusão.
Situações como essas acontecem com frequência crescente. Não são citações em grego ou referências afetadas a assuntos especializadíssimos que se revelam estranhos a meus interlocutores mais jovens, e sim temas que, até há pouco, eram corriqueiros, banais, de conhecimento geral.
Acredito que a esmagadora maioria dos brasileiros com mais de 40 anos conhece Dom Quixote, O Alienista e Cem Anos de Solidão. Até há pouco, eles integravam, de forma intensa, a tendência dominante da cultura geral, a moda em vigor: o chamado “mainstream”.
O que houve com o mainstream?
Ele ainda existe?
2007 foi o ano de lançamento do iPhone. Talvez no futuro essa data seja lembrada como um marco da revolução tecnológica. A partir de então, de forma mais ampla, carregamos nossa vida num pequeno aparelho, que cabe em qualquer lugar.
Por meio dele, temos acesso à informação praticamente ilimitada em tempo real. Podemos, quando é do nosso interesse, escutar a música que desejamos e assistir a filmes e a outros programas. Pagamos contas. Registramos sons e imagens. A fronteira da vida profissional e pessoal se esgarçou. A distância física foi relativizada. Com o celular, que acompanha nossos passos como uma sombra, estamos livres e presos ao mesmo tempo.
Em função dessa revolução, hoje numa mesma casa cada um de seus habitantes escolhe sua própria música e assiste, sozinho, a um conteúdo. Cada qual faz sua opção de leitura, cuja fonte, na maior parte das vezes, adquire a partir de seu aparelho celular – aliás, é uma praga que, nos momentos em que estão juntos, os moradores da mesma casa fixem a atenção em seus seus celulares, ensimesmando-se.
Trinta anos antes do advento do iPhone, em 1977 – o espaço de apenas uma geração – a realidade era outra. Estávamos todos vinculados. Naquela época, como desde os primórdios da civilização, os membros da sociedade tinham conhecimento dos grandes vetores da cultura.
Um homem medieval, por exemplo, dominava os conceitos preconizados pela Bíblia, a fonte primordial das informações. Os ingleses da época vitoriana apreciavam as peças de Shakespeare, ao passo que a sociedade alemã da virada para o século XX tinha lido os contos populares colhidos pelos Irmãos Grimm. Nos anos 60, mesmo os mais conservadores não desconheciam Herman Hesse e Tolkien.
Na minha casa, quando eu era criança havia apenas uma vitrola. Meu pai adquiria, todos os anos, o disco do Roberto Carlos, lançado tradicionalmente pouco antes do Natal. A casa inteira ouvia a mesma música. Também tínhamos somente um aparelho televisor que, de noite, transmitia o Jornal Nacional da Rede Globo, e, na sequência, a novela das oito (que, coerentemente, era exibida nesse horário). A minha e as demais famílias se reuniam para assistir a esses programas, transformados no grande e poderoso fluxo de informação. Tínhamos uma boa biblioteca em casa, com Machado, Eça, Veríssimo, Jorge Amado, os russos, os franceses…
Por sugestão da minha mãe, li cedo Os Capitães de Areia, de Jorge Amado. Fiquei maravilhado ao entender que a maioria dos meus conhecidos tinham lido as aventuras de Pedro Bala e Zé Gato. Por orientação da escola, li A hora da Estrela, de Clarice Lispector. Na época, percebi que não apenas os meus colegas de classe estavam lendo o livro, mas um grupo enorme de outras pessoas, de outras idades, haviam também desfrutado daquela obra. Eu poderia comentar com elas minhas impressões acerca do texto. Compartilhávamos um assunto
Notadamente as obras da literatura clássica, as mesmas responsáveis pela instrução de gerações, integravam esse grande vetor cultural, formado pelas experiências coletivas. A Bíblia, Dante, Shakespeare, Cervantes, Goethe, Kafka, García Márquez, entre outros, se tornaram parte dessa grande corrente – o mainstream.
Ao redor desse caldo cultural, a sociedade se reunia – e se unia. As pessoas se identificavam a partir das referências comuns. Em função disso, emocionavam-se com as mesmas coisas: riam e choravam juntas.
De forma evidente, os meios de comunicação definiam o fluxo majoritário. As músicas conhecidas eram aquelas tocadas nas rádios. Os artistas mais populares participavam de programas nas televisões (quando havia menos de um punhado de canais disponíveis) e integravam o elenco dos filmes (poucos, apresentados em um limitado número de cinemas). O cânone dos livros clássicos era composto, na prática, pelos mesmos lidos por nossos pais e avós.
Esse modelo, em vigor por séculos, ruiu com o advento da revolução tecnológica – cujo marco se deu com o lançamento do iPhone. A partir de então, as experiências se tornaram um fenômeno individual. As famílias e os amigos já não se reúnem em frente a uma televisão ou ao redor da vitrola. Como as opções parecem infindáveis, as preferências costumam não se encontrar. No reverso da reflexão de Donne, os homens passam a ser ilhas. Em outras palavras, o mainstream se esgarçou.
No que se refere à literatura, historicamente a grande amarra cultural, a situação revela-se mais dramática. Isso porque, na atualidade, existem muitos outros meios de entretenimento, de mais fácil e barato acesso, a tirar da leitura a condição de poderoso meio de entretenimento e disseminador de informação. Como, hoje, é fácil tornar público um texto, mesmo entre os leitores, deixou de ser comum encontrar alguém lendo o mesmo livro.
A vida em comunidade se justifica na medida em que comungamos dos mesmos valores. Se a cultura conecta a sociedade – e essa cultura navega pelo mainstream –, o que esperar de uma sociedade que já não tenha referências comuns? Do que, no futuro, irão rir em conjunto as pessoas? Do que elas vão todas chorar? Onde elas se encontrarão se não houver algo em comum?
Com o esvaziamento do mainstream, as experiências coletivas são cada vez mais raras. Verificamos o rompimento da transferência, para a próxima geração, dessa base cultural, responsável por conectar a sociedade.
Avista-se um real (e tenebroso) risco de quebra da tradição, quando a maior parte das pessoas deixar de saber quem foi Balzac ou Dostoiévski. Nosso país será menor se desprezarmos Guimarães Rosa e Ariano Suassuna – autores que explicaram o Brasil. Fomentar cultura não se justifica apenas por nos fazer pessoas mais interessantes, mas, principalmente, por manter a comunidade genuinamente unida.
Ler os clássicos passa, portanto, a ser um ato de resistência. Ao ler uma obra literária clássica – e há inúmeras, desde Homero até Isabel Allende, ou de Érico Veríssimo a João Ubaldo Ribeiro –, protegemos a sociedade para que nunca chegue o dia em que cada um fale a sua própria língua e deixemos de rir das mesmas coisas.
Portanto, caro leitor, dê um livro a um jovem – e salve a civilização.