“Você tem muito talento, mas ser artista não dá dinheiro.” 

Daniele Cavalier ouviu essa frase de seu pai quando ainda era pequena e só pensava em desenhar. Criativa e inquieta, a carioca cresceu com o objetivo de resolver essa equação quase existencial: como ganhar dinheiro sendo artista?

 Agora, uma exposição na galeria Galatea comprova o êxito de Cavalieri em ter reconhecimento crítico e financeiro ao mesmo tempo – o que pouquíssimos jovens artistas conseguem, ainda mais com tanta rapidez

Completamente vendida antes da noite de abertura, Tecer o próprio destino – um título cheio de significados – é a primeira individual da artista.

Cavalier nasceu em 1993 na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro. Como seus pais dividiam um imóvel com outras mulheres da família, Cavalier cresceu vendo mulheres que praticavam diversas práticas manuais, como costura e pintura de porcelana, e com 10 anos começou a frequentar aulas de pintura com a madrinha. Era uma criança no meio de senhoras de mais de 60.

Sua formação não aconteceu em museus ou escolas de arte, mas neste ambiente familiar, sem pretensão ou formalidades. 

Atenta ao alerta paterno, Cavalier prestou o vestibular para arquitetura, pensando que a profissão poderia lhe dar uma boa renda e a possibilidade de manter o lado criativo dentro de uma carreira estruturada. No meio do curso, fez um estágio em um dos melhores escritórios de arquitetura da cidade, e viu que não seria feliz na profissão.

Naquela época, recebeu de uma amiga um convite inusitado: montar uma marca de roupa de praia. Mesmo nunca tendo pensado em trabalhar com moda, viu ali a oportunidade de criar livremente, trabalhando com o universo feminino e em um negócio que daria um rápido retorno financeiro.  

A marca, criada em 2015, fez sucesso no Rio e fora dele, e chegou a desfilar na Ucrânia e participar de feiras de moda em Paris. Em paralelo, Cavalier continuava estudando arte – para ela, um “oceano infinito que ainda não dava pé,” ela disse ao Brazil Journal

Intuitiva, começou a guardar os restos de lycra que sobravam dos biquínis. Quando as sobras passaram a ocupar um quarto inteiro, ficou incomodada – mas sentia que não era hora de descartar os retalhos sem lhes dar uma destinação definida. 

Em um dos vários cursos que fez com Charles Watson – um professor do Parque Lage e figura emblemática na carreira de muitos artistas nos últimos 40 anos – Cavalier ouviu Beatriz Milhazes contar sobre seu começo de carreira, quando ia na feira do Saara, no centro do Rio, e comprava enfeites de carnaval, tecidos coloridos, embalagens. Beatriz lembrou que juntava nas mesas do Parque Lage tudo que tinha comprado e para fazer justaposições, o que mais tarde viria a constituir suas pinturas. 

Cavalier não precisou ouvir o final da palestra: teve uma epifania e percebeu que era aquilo que tinha que fazer com a lycra acumulada. No ateliê, começou a tensionar a lycra, costurar, amarrar. Pensou em criar esculturas até perceber que os resíduos poderiam ser a pintura e o suporte ao mesmo tempo, criando o que ela chama de “pintura sólida” – algo que transita entre paisagem, abstração e geometria, unindo arte e artesanato. 

O resultado foi um complexo composto por um chassi de madeira, sem tecido canvas, nem óleo, mas com lycras coloridas, tensionadas e amarradas de forma que criavam a tela e a imagem.

Por utilizar a sobra da moda praia, as cores que a artista utiliza estão ligadas às tendências do momento em que as peças são produzidas.

Quando terminou as primeiras obras, a artista não mostrou para ninguém; queria respeitar a fragilidade do começo. Um dia sentiu que estava madura para revelar sua criação e postou um trabalho na sua conta do Instagram – hoje o melhor dealer do mundo. 

Duas ex-clientes dos tempos da marca de biquínis, hoje galeristas em São Paulo, identificaram imediatamente o potencial do trabalho. “Em poucos minutos já estava recebendo mensagens de duas galeristas pedindo portfolio,” disse Cavalier. 

Anita Pastonesi, uma diretora da Galatea, foi uma delas. Tomás Toledo, um ex-curador do MASP e hoje sócio da Galatea, foi até o Rio conhecer o ateliê e entender a pesquisa artística. 

Para Tomás, o trabalho de Cavalier aproxima a arte contemporânea do manual e do têxtil, o que é considerado de forma pejorativa como artesanato.

“Algo que me impressionou é que todo o arranjo formal, o resultado estético, ele é, na verdade, uma manifestação de um interesse conceitual de criar um dispositivo, que ela chama de pintura sólida, para investigar o estatuto da pintura e a composição dessa ideia de pintura,” disse Tomás. “É uma relação interessante onde a estrutura é a própria superfície pictórica.”

Na última SP-Arte, os quadros de Cavalier foram disputados, e agora ela estreia formalmente com sua primeira individual toda vendida e fila de espera para a próxima produção. Um case no mercado.

“Olhando em retrospecto, o desenho, as aulas de pintura com minhas tias, a faculdade de arquitetura, o universo da moda, tudo contribuiu para o que eu crio hoje, são fios desse tecido que vem se formando,” disse a artista.