Quando estava na faculdade de gastronomia, o paulistano Rafael Aoki faltou à primeira aula de confeitaria. Preferiu o bar com os amigos à aula de doces, uma seara que não lhe atraía.
Hoje com 25 anos, aquele aluno pouco dedicado agora é o líder da produção de sobremesas do Aizomê, um dos japoneses mais premiados do País, e um agente importante na mudança de paradigma da doçaria brasileira, marcada historicamente pelo excesso de açúcar, uma herança do ciclo da cana.
As sobremesas de Aoki não estão restritas ao dulçor – podem ser amargas, ácidas, cítricas. “Faço uma confeitaria de vanguarda, nipo-brasileira. Tenho em mente o pensamento japonês, que respeita a sazonalidade e o não desperdício, uso técnicas clássicas japonesas, técnicas modernas da cozinha e do bar, e ingredientes nativos. Não por patriotismo, mas para trazer o que há de melhor e mais fresco,” Aoki disse ao Brazil Journal.
A foto de uma de suas criações, que desafia o padrão brasileiro e representa o conceito de sua confeitaria, recebeu medalha de ouro no Professional Food Photography Awards, no Japão, e está exposta em Shibuya, um dos principais centros comerciais e financeiros do mundo, em Tóquio.
Seu preparo combina sorbet de jabuticaba, conserva de flor de vinagreira, compota de ruibarbo (cujos talos comestíveis guardam certa semelhança com o aipo) e licor de ameixa japonesa. Este último é enriquecido com uma infusão das cascas da jabuticaba, para que não sejam descartadas e se aproveite o ingrediente integralmente.
“Umegokorō, que significa algo como ‘a alma do umê’, é uma homenagem à memória dos imigrantes japoneses no Brasil. Quando chegaram aqui, muitos usaram flores de vinagreira para substituir o umê, a ameixa japonesa. Foi essa lembrança que me inspirou,” disse Aoki, que tenta em sua criação construir uma convivência harmônica entre untuosidade, salgado e acidez.
A influência de seus ancestrais esteve presente desde os primeiros contatos com a cozinha.
Sua avó materna, uma brasileira casada com um imigrante japonês, preparava regularmente um combo de niguiris, missoshiro, conservas variadas e sardinhas fritas, do qual se lembra até hoje. Na primeira vez em que teve autonomia na cozinha, porém, escolheu fazer um brownie para sua mãe, numa data comemorativa.
Tinha oito anos.
Seguiu o passo a passo de um livro promocional de receitas, e pediu ao pai que tirasse o bolo do forno. “Era tarde e fui dormir. No dia seguinte, acordei e encontrei o bolo todo queimado.”
A pequena tragédia não abalou a alegria da mãe, diante da tentativa do filho. Psicanalista, e filha de um japonês que veio para o Brasil durante a Primeira Guerra, ela resistiu à escolha de Aoki pela faculdade de gastronomia. Tinha preferência por carreiras mais ortodoxas, como Direito ou Medicina.
Seu pai, por outro lado, um psicólogo e pedagogo professor universitário, o apoiou. O elo entre os dois se estreitou diante da televisão.
Quando Aoki tinha uns 13 anos, não perdiam por nada o MasterChef, o reality show gastronômico da Band. Às terças-feiras, o pai chegava mais cedo do trabalho e Aoki tinha permissão para dormir mais tarde.
Foi inesperado que, depois de ter sido resgatado do bar por uma amiga que o levou à segunda aula de confeitaria no Mackenzie, Aoki tenha se rendido às sobremesas, que o alçaram a dois programas televisivos culinários, “Que Seja Doce” e “The Taste Brasil”, ambos do GNT.
Do primeiro, saiu vencedor, com uma sobremesa em que explorou várias texturas de chocolate e diferentes porcentagens de cacau. O fogão do prêmio deu à sua mãe, para quem ligou imediatamente depois de sair do programa para pedir a indicação de uma terapeuta.
“Eu era um pouco iludido, tinha uma visão glamourizada da gastronomia e percebi que em algum momento ia cair.”
Caiu.
À época, trabalhava no Quincho, um premiado restaurante vegetariano em São Paulo, a cidade em que nasceu e vive até hoje. Ao fim do expediente, chorava na calçada. “Entrei em uma depressão muito profunda. Emagreci uns 20 quilos,” disse o confeiteiro, que chegou a pesar 50kg.
O que o reergueu foi uma ideia maluca que teve (e colocou em prática) de criar um menu-degustação de sobremesas. “Mobilizei confeiteiros, amigos, jornalistas e isso me deu energia e me tirou do fundo do poço.” Na primeira noite de evento no Quincho, serviu 600 sobremesas, numa sequência que construiu para não enjoar nem causar monotonia. “Queria mostrar que a confeitaria é mais que açúcar.”
Foi com seu professor Rodrigo Ribeiro – chef-pâtissier a abrir o primeiro restaurante do Brasil especializado exclusivamente em sobremesas, o Ara, em São Paulo – que aprendeu que a confeitaria é um “prato em branco”.
“Percebi que era possível trazer elementos salgados para dentro das sobremesas, porque o sal é um realçador de sabor, e que esse universo não tinha limites.”
Aoki abriu o menu-degustação com um caldo de cogumelos com vinagre de caqui, que ele mesmo fermentou, em uma composição que trazia a própria fruta, finalizada com uma granita também de caqui. “Fui intensificando o menu com profundidade de sabor, não com dulçor. Comecei com coisas mais leves, mais florais, fui para criações mais frutadas e cítricas, e depois explorei o amargo e a untuosidade.”
Para chegar ao alto nível técnico, Aoki passou alguns perrengues. Aos 18, com o sonho de ir para a cozinha, lidava apenas com Excel em seu primeiro estágio. Tinha de fazer o controle do estoque, contava item por item, e anotava a mão os números que depois planilhava com rigor.
Num outro trabalho, teve que se haver com sua incompetência para cobrir assadeiras enormes com papel-filme, que engruvinhava irritantemente. Já teve de transformar sua pequena cozinha de casa, onde gosta de preparar pratos tradicionais da culinária japonesa, em cenário de uma linha de produção frenética de bombons pintados à mão, que lhe serviram de sustento na pandemia.
“Quando viajei ao Japão tive uma epifania. Tudo que eu estava aprendendo era só o caminho do que estava por vir.”
Hoje, no Aizomê, Aoki está cercado de profissionais que complementam seu trabalho na confeitaria e se enriquece com os ensinamentos da chef Telma Shimizu, que foi reconhecida pelo governo japonês com um prêmio que a destaca como figura que promove a comida japonesa no exterior.
O processo de criação de Aoki é pouco ortodoxo. Envolve consultas de imagens no Instagram e no Pinterest, e recursos da inteligência artificial. Ele parte da estética em direção ao sabor.
“Gosto de criar a partir da apresentação de cada sobremesa. Penso no formato, trago referências – pode ser a forma de um móvel, por exemplo –, e depois penso nos sabores para montar elemento por elemento e chegar ao quadro final.” Sua intenção é sempre a mesma na gastronomia: “Mudar a vida das pessoas, mesmo que seja só um pouquinho.”