No auge da pandemia, num dos Estados mais afetados pela covid-19, a Receita Federal deu “perdimento” em 107 aparelhos respiradores importados da China pelo governo do Maranhão. Tecnicamente, o “perdimento” é aplicado quando a mercadoria é trazida do exterior de forma irregular ou ilegal. Seguindo a letra da lei, os auditores teriam que ir ao hospital desligar os respiradores dos pacientes em estado crítico, muitos à beira da morte, e encostar os equipamentos num galpão qualquer da Receita.
Parece piada macabra, mas a declaração de “perdimento” foi assinada por servidores do fisco no Maranhão no final de abril.
O ato, ao qual o Brazil Journal teve acesso, gerou uma guerra entre o governo do Estado, a Receita e o governo federal.
Na prática, é impossível que essa medida seja levada a cabo. Mas o episódio suscita perguntas: o que leva um auditor, um funcionário público, a assinar um termo como esse? Será que o Brasil não consegue vencer a burocracia nem no meio de uma pandemia? Finalmente: houve algum elemento político na decisão, num momento em que Brasília e os governadores estão em campos opostos?
O Maranhão já havia feito três tentativas de comprar respiradores, aparelhos fundamentais para salvar a vida dos pacientes infectados pelo coronavírus nos casos mais graves. Em março, o Estado havia reservado um lote dos aparelhos em uma fábrica de Santa Catarina. O governo federal atravessou o pedido para direcionar os equipamentos para o Ministério da Saúde.
Logo depois, encomendou 150 respiradores da China. Dessa vez, foi a Alemanha que entrou na frente do governo maranhense, pagando mais pela mercadoria. Na terceira tentativa, ocorreu o mesmo: a interceptação partiu dos Estados Unidos.
As dificuldades para a aquisição do equipamento não eram exclusividade do Maranhão; o mundo inteiro passou a disputar os aparelhos a tapa. Já escaldado, o governador Flávio Dino (PC do B) e sua equipe montaram uma complexa operação — com o auxílio da Vale e empresários locais — para fugir do alcance dos Estados Unidos, da Europa e até mesmo do governo federal brasileiro.
Com doações de diversas empresas, a importação foi realizada em nome do Grupo Mateus, uma rede de supermercados já habituada a comprar produtos diretamente da China.
Um avião fretado saiu da cidade chinesa de Guangzhou e fez escala na Etiópia. De lá, desceu em Guarulhos no dia 13 de abril.
Ao chegar em São Paulo, os aparelhos foram imediatamente transferidos para outra aeronave, fretada pelo governo do Maranhão. A própria Receita Federal em Guarulhos permitiu que os trâmites alfandegários fossem realizados em solo maranhense.
Já passava das 21 horas quando o avião aterrissou em São Luís. Àquela hora, não havia funcionários do fisco em serviço. Vários integrantes do primeiro escalão do governo estadual aguardavam a chegada dos equipamentos no aeroporto, entre eles o secretário de Indústria e Comércio, Simplício Araújo. Para liberar os equipamentos, Araújo assinou um documento pelo qual se comprometia a voltar no dia seguinte para cumprir as exigências da aduana.
Mas quando o secretário foi ao aeroporto no dia seguinte, o palco de guerra já estava montado.
Conforme revelou o jornal Folha de S. Paulo, a Receita Federal divulgou uma nota, no dia 20 de abril, na qual afirmou que a operação havia sido “realizada sem o prévio licenciamento da Anvisa e sem autorização da Inspetoria da Receita Federal em São Luís, órgão legalmente responsável por fiscalizar a importação das mercadorias.”
O fisco aumentou o tom, dizendo que, “diante da situação de flagrante descumprimento à legislação aduaneira (art. 23 e art. 27 do DL 1455/76), aplicável no âmbito do comércio internacional”, iria tomar as providências legais cabíveis “contra as pessoas físicas e jurídicas envolvidas, promovendo os competentes procedimentos fiscais, além de representação aos órgãos de persecução penal.”
O deputado federal Márcio Jerry (PC do B-MA), do mesmo partido do governador, disse à imprensa que a reação desproporcional da Receita seria uma tentativa de retaliação do governo federal.
Àquela altura da pandemia, o Governo Jair Bolsonaro já trocava cotoveladas com os governadores. Enquanto a grande maioria deles defendia o isolamento social para evitar a aceleração do contágio, Bolsonaro defendia churrascos e comparecia a atos contra o Congresso e o Supremo, e sem o uso de máscaras.
Dino, filiado a um partido comunista, certamente estava entre os top five dos mais odiados pelo Planalto.
É difícil saber se houve ou não motivação política no comportamento dos auditores no episódio dos respiradores maranhenses. Afinal, há uma lei e um decreto que preveem “perdimento” em importações supostamente irregulares ou ilegais. Os fiscais podem ter simplesmente seguido o manual.
Mas fontes do Governo Dino dizem que o imbróglio foi causado pela vontade de um servidor de ficar bem com o Planalto.
O chefe da Divisão de Repressão da Receita da 3ª Região, que inclui o Maranhão, é o servidor Ivanilson Silva, um ex-capitão do Exército. Foi ele quem conduziu a ação que resultou no perdimento.
No entendimento dos auditores, como a importação foi feita pelo Grupo Mateus mas os equipamentos foram destinados aos hospitais públicos do Maranhão, o Estado entrou como solidário.
O governo Dino afirma que todas as exigências para a importação foram cumpridas tempestivamente. E que, ainda que não tivessem sido, este deveria ser um caso de bom senso e humanidade, sem aplicação de um instrumento extremo da lei. A Procuradoria Geral do Estado do Maranhão estuda recorrer à Justiça contra o ato da Receita.
Procurada, a assessoria da Superintendência da 3ª Região do fisco informou que o assunto havia sido passado para a sede da Receita em Brasília, mas esta não se manifestou sobre o episódio.
Na madrugada do dia 14 de abril, cinco horas após a chegada dos equipamentos a São Luís, os respiradores já estavam salvando vidas no Centro Médico Dr. Genésio Rego.
Leonardo Souza é jornalista, duas vezes vencedor do Prêmio Esso.