Depois de cinco anos de dedicação integral — três dos quais usando o crachá de presidente — hoje é o primeiro dia em que não vou trabalhar na BRF.
Para mim, é um dia de emoções conflitantes: se por um lado não carrego mais o ônus da responsabilidade, por outro não estarei incumbido da missão mais apaixonante que um executivo de 42 anos poderia desejar.
Servir à BRF foi, além de um privilégio e uma honra, uma experiência que me ensinou humildade perante a dimensão da empresa e seu impacto para nossos fornecedores, consumidores em 150 países, 110 mil funcionários e o Brasil.
Hoje temos uma BRF genuinamente global. Em três anos, fizemos 15 aquisições, que consumiram investimentos de US$ 1,5 bilhão e hoje deixam US$ 300 milhões/ano no caixa da companhia. Neste período, o faturamento internacional da BRF passou de 45% para 58% do total, e deve ultrapassar 60% no ano que vem, à medida em que os preços se recuperam.
Avançamos como nunca na agenda da eficiência operacional: após sucessivos anos de austeridade, temos hoje a BRF mais enxuta e produtiva de sua história. Ao redesenhar nossa logística de frete marítimo, por exemplo, o nível de cargas não embarcadas conforme planejado desabou de 35% (a média da indústria) para 8%, e como consequência nossa despesa de frete marítimo caiu 30%. Fechamos armazéns e pontos de transbordo, elevando as vendas diretas da companhia para cerca de 30% do faturamento, o que aumentou a eficiência e o nível de serviço aos nossos clientes no Brasil.
Quando saí da Tarpon para trabalhar na companhia, não deixei para trás o livro-texto de como um negócio deveria ser tocado. Mas posso afirmar com conhecimento de causa que o livro-texto está longe de conter todas as respostas para os enormes desafios que um negócio tão complexo enfrenta a cada dia. Para se ter uma noção aproximada desta responsabilidade, cada brasileiro consome, em média, 10 quilos de produtos da BRF por ano.
Sei que parte dos acionistas foi crítica à minha gestão. É do jogo. Por vezes, nós mesmos marcamos gol contra quando batemos cabeça sobre o que cada acionista desejava para a companhia. Mas, assim como tive que fazer adaptações ao livro-texto, gostaria que os que observam a BRF de fora apreciem, mais que nunca, que este não é um negócio que pode ser tocado de olho no próximo mês ou trimestre.
Como qualquer organismo vivo, a BRF é um sistema complexo: se uma gestão tentar privilegiar o acionista no curto prazo, prejudicará os outros elos da cadeia, aqueles que garantem sua qualidade e sustentabilidade no longo prazo.
Nosso trabalho foi parcialmente ofuscado pela alta do preço do milho, a maior recessão da história do Brasil e uma concorrência, que, sabemos hoje, se baseava em métodos heterodoxos e capital, por assim dizer, ilimitado… Tudo isso deprimiu os resultados de curto prazo, mas em meio a todo o barulho, fizemos progressos que fortalecerão a companhia para os próximos 30 anos.
A BRF hoje é um exemplo de capitalismo consciente, e me orgulho de ter feito parte desta história. Das 20 cidades com maior IDH no Brasil, 14 estão ancoradas social e economicamente em unidades agroindustriais da BRF.
É possível que nossa companhia não tivesse resistido à Operação Carne Fraca se nossos colaboradores não tivessem promovido avanços significativos em compliance e qualidade desde que assumimos a gestão.
O que inicialmente parecia ser uma investigação sobre casos de corrupção isolados logo se converteu num escândalo de enormes proporções fundado em acusações levianas sobre a qualidade de nossos produtos.
Foi justamente ali, em meio à maior crise de imagem da história da empresa, que a capacidade da BRF de ser maior que os obstáculos mais me emocionou. A resposta de toda a cadeia foi vigorosa: inúmeros funcionários postaram fotos alimentando seus filhos com nossos produtos e, num vídeo, um deles encontrou espaço para o humor: “Se vocês duvidam do nosso produto, mandem aqui para casa que terei prazer em incinerá-lo”, disse o funcionário enquanto preparava, sorrindo, a grelha do churrasco.
A verdadeira resposta da BRF à Carne Fraca não foi dada por seu CEO, mas pela convicção e o amor de nossos fornecedores, integrados, colaboradores e consumidores, que em poucos dias voltaram às nossas marcas.
Só uma cultura robusta poderia absorver um choque daquela magnitude.
Vindo de fora da indústria, logo me dei conta de que a forma como lidamos com o sacrifício dos animais é um grande tabu. Refletindo sobre isso, desde 2014 começamos a transformar o ethos da BRF numa cultura de celebração da vida.
Fizemos conquistas substanciais em duas questões centrais ao futuro da indústria: o bem-estar animal e o uso consciente de antibióticos.
De 2013 para cá, a BRF diminuiu em 90% o uso de antibióticos em suas aves de corte — o que nos coloca na vanguarda do setor — ao mesmo tempo em que aumentamos dramaticamente a saúde e o bem-estar de nossos animais.
Pensando no consumidor, reduzimos a utilização de sódio em toda linha de produtos Sadia em 30% — cerca de 180 toneladas anuais a menos de sódio — e há mais por vir.
Na segurança do trabalho, onde a BRF já era referência mundial, estendemos nossos cuidados para além do portão da fábrica. Os acidentes com nossos transportadores despencaram 59%, e os óbitos, 45%. Dentro das fábricas, os acidentes de trabalho diminuíram 50%, e a rotatividade anual caiu para 16%, um número sem paralelos na indústria frigorífica.
Deixo a BRF com a certeza de que nossos resultados já refletem uma clara tendência positiva, e de que muito mais será colhido no futuro próximo. E, felizmente, deixo-a em excelentes mãos. Meu sucessor sempre foi um conselheiro interessado no sucesso da companhia, fazendo as (necessárias) perguntas duras e mantendo a mente aberta. Desejo ao Drummond que ele se apaixone rapidamente pela empresa, e que sua paixão seja recompensada com todo o sucesso que o trabalho duro costuma trazer.
Hoje não vou trabalhar na BRF, mas jamais deixarei de vestir sua camisa.
Pedro Faria foi conselheiro, CEO internacional e CEO global da BRF. É sócio-fundador da Tarpon Investimentos.