Aos 11 anos, depois da escola, Benê Souza ajudava seu primo como servente de pedreiro. Entusiasta do trabalho manual desde pequeno, gostava de bater a massa e carregar a carriola – e ainda ganhava um pagode, como se refere a dinheiro.

Àquela época, ainda era Ebenezer, um nome de origem bíblica, eleito pela família evangélica, de Sumaré, no interior de São Paulo. Virou Benê quando entrou, acidentalmente, na cozinha.

“Ebenezer é gigantesco, até acertar o nome e me chamar, já queimou tudo”, disse o chef, cheio de graça, que hoje com 28 anos lidera a cozinha do Z Deli Restaurante e Delicatessen, um dos pontos gastronômicos mais efervescentes de São Paulo, no qual a fila faz parte do programa.

Embora já tenha sido reconhecido como revelação por prêmios importantes de São Paulo, o passado de sua história com a cozinha não tem romantismo algum, e isso não o incomoda. “O que minha avó cozinhava? Nada. O que tinha na geladeira da minha casa quando eu era pequeno? Hambúrguer e linguiça. O que eu fazia no improviso? Salsicha.”

Seu encantamento pela cozinha emergiu depois de entrar nesse ambiente, numa busca desesperada para se encontrar profissionalmente, ainda muito jovem. À semelhança de sua mãe, que já fez de tudo um pouco – foi guarda de empresa, trabalhou na indústria têxtil e hoje é gerente de vendas com o sonho de abrir um negócio de material de construção – Benê experimentou alguns caminhos antes da cozinha.

Com raiz indígena e negra, numa família cujo bisavô era um cangaceiro nordestino, aos 14 anos Benê deu aula de musicalização infantil e chegou a abrir uma escola de música com um tio, na qual também ensinava violão para ganhar algum trocado.

Seu vínculo com a música veio do berço, por meio de seu pai, trombonista de orquestras municipais, e o acompanhou ao longo da vida – até integrou um grupo de samba. Hoje batuca mais de 15 instrumentos de percussão, tem samba no pé, canta maravilhosamente bem e precisaria mudar de casa para comportar mais instrumentos musicais.

08 30 Bene Souza ok

Tentou o caminho da mecânica. O curso técnico o aproximou e o afastou desse universo. Viu-se sentado diante de um computador, envolvido no desenvolvimento de um sistema de segurança de uma prensa, mas o que almejava era o chão de fábrica, entrar embaixo das máquinas para fazer manutenção.

Nunca se viu em situação psíquica pior do que nessa fase. “Quando você é de uma família humilde, tem que começar a trabalhar cedo e decidir seu caminho rápido. Não tem tempo pra pensar. Dá errado, começa de novo.”

Aconselhado por um amigo que o fitava preparando vez ou outra umas receitas de Ana Maria Braga, foi arriscar a cozinha como alternativa. Passou em gastronomia em duas universidades públicas, uma no Rio, outra em Salvador. Recuou ao se dar conta de que não conseguiria bancar o custo de vida em outra cidade e matriculou-se em um curso técnico no interior, no qual estudou somente com donas de casa ricas de Campinas.

História vai, história vem, meio animado, meio desanimado, lavou prato, cortou salsinha, grelhou picanha.

Aliás, a picanha é um elemento importante na sua vida. Em casa a preparava de dois jeitos: invertida, com queijo, de modo que a carne ficava bem passada e a gordura, mole; e no forno, envolta por sal grosso.

Na cozinha profissional mais movimentada que já esteve, que chegava a atender 900 pessoas por dia na rua principal de Sumaré, lidava com meia tonelada de picanha por semana, cujo preparo numa grelha de ferro ultraquente era sua responsabilidade.

Em um de seus primeiros trabalhos, ganhou de um garçom um livro autografado pelo chef Emmanuel Bassoleil, francês radicado no Brasil. Os sabores da Borgonha, no qual o chef descreve sua vida na França, a um só tempo o comoveu e o motivou a buscar mais referências gastronômicas. “O Bassoleil morava numa casa com três cozinhas, o pai caçava, a mãe fazia compotas,” lembra Benê, que tem nessa leitura um momento epifânico de sua história.

Parece uma vida, mas depois de tudo isso, ele só tinha 18 anos. Com essa idade, resolveu tentar a sorte em São Paulo. Começou lá em cima, em um estágio no Maní, um dos restaurantes mais premiados da cidade. O tempo congelou quando observou pela primeira vez o belga Willem Vandeven, braço direito da chef Helena Rizzo, trabalhando.

“Nunca tinha visto aquilo na vida. E acho que até hoje, nunca vi nada igual. Os gestos, a preocupação, a maneira de segurar o pano, de virar a panela, a concentração, a postura. O mundo parou, e eu pensei: ‘quero trabalhar assim’.”

Foram cinco anos no Maní, onde aprendeu a desenvolver um trabalho criterioso e com minúcia. Assumiu em seguida uma equipe com 30 cozinheiros no Rosewood. Firmou-se no restaurante principal do hotel, o Taraz, sob os cuidados do chef midiático Felipe Bronze, cuja proposta era um cardápio latino-americano.

A primeira cozinha que assumiu com independência, para criar o menu ao seu estilo, foi o Virado, no centro de São Paulo, onde servia um simples bem-feito – frango frito com creme de milho; carne cruda com pastel de vento; feijoada, cujo preparo aprendeu com Mara Salles, uma das guardiãs da cozinha brasileira, que o acolheu em seu restaurante Tordesilhas.

Benê não perde a ginga nem nos momentos de maior tensão. Outro dia, postou uma foto no Instagram dando uma gargalhada, cuja legenda era “só sei assim.”

No próprio Virado, uma noite teve de trabalhar no escuro, no meio do serviço, quando a luz do centro de São Paulo acabou. Sem fritadeira, sem forno, só com a panela num fogãozinho, à luz das lanternas dos celulares da equipe – e deu tudo certo.

Esse é o espírito que imprime na cozinha do Z Deli, que assumiu na reabertura da casa, há quase um ano, a convite de Julio Raw, o sócio que assina o cardápio de bistrô do leste europeu.

“Meu aprendizado todo na cozinha veio da ajuda de outras pessoas. Sei da importância das relações e valorizo isso. Minha liderança pressupõe trabalhar cada pessoa da equipe de forma individual.”

Benê preserva uma aura alegre no ambiente de trabalho. “A gente passa muito tempo na cozinha, nossa vida precisa fazer sentido aqui. A gente precisa querer acordar todo dia para vir trabalhar,” diz o chef, que nas horas vagas joga sinuca com os funcionários na área de descanso do Z Deli.

A história da delicatessen remonta ao começo dos anos 1980, quando abriu pelas mãos da avó de Julio, dona Rosa Raw, uma entidade da gastronomia paulistana. Depois de passar por uma reforma belíssima, no mesmo ponto de suas origens, uma esquina dos Jardins, ganhou um salão descontraído e festivo, que combina o novo e o velho, com um bar aberto para a calçada, na qual a espera se avoluma nos horários de pico.

“Todo o restaurante, a comida, o som, os drinques, o cardápio conta uma história antiga de um jeito novo. Sabe o novo com alma velha? Então, é também o que eu sou,” brinca Benê, que se identifica com essa ideia. “Falo brincando, mas me considero exatamente isso: um novo com alma de velho.”

Sua cozinha, com ótimos preços, segue a mesma toada: é moderna mas conta histórias clássicas.

Um sobrevoo pelo cardápio revela alguns pratos inegociáveis, gostosos de dispor ao centro da mesa para dividir. O quibe cru de atum com coalhada, cebolas tostadas, hortelã e sumac, uma especiaria cítrica, respeita o receituário judaico kosher – não mistura leite e carne bovina. Os clássicos vareniques, uma massa recheada com batata e cebola confitada dulcíssima, são regados com um untuoso jus de aves. A alcachofra à judeia, delicadamente empanada, recebe incremento de um aioli de anchovas, pecorino ralado, limão e hortelã. O movimento do Z Deli é tão intenso que é preciso importar mensalmente da Itália uma tonelada e meia de alcachofras.

A sessão de sobremesas é uma perdição: cheesecake coberto com geleia de mirtilo; merengada com morangos frescos; profiteroles embebidos em abundante calda de chocolate; e um bolo grego que já arrancou lágrimas, indeed. Trata-se de um bolo com várias camadas de massa filo, aquela fininha folhada, combinada a um creme de ovos com laranja e especiarias.Vai à mesa ainda morno e recebe por cima uma calda de laranja.

Embora esteja no comando, no dia a dia fica pouco no fogão. Sua vontade de cozinhar é consolada em casa, geralmente nas manhãs. Acorda religiosamente às cinco e meia para tomar café e treinar, para aguentar o tranco da rotina. Faz ovos, “às vezes um club sandwich. Faço até bife de manhã, nos dias em que acordo e quero dar uma cozinhada.”

Benê também tem seus caprichos. Coleciona tênis, está aprendendo a tocar cuíca – o instrumento mais difícil que já tentou aprender; “ainda parece que estou matando um animal” – e coze suas calças num alfaiate, como se fazia nos velhos tempos.

Já leu a bíblia inteira sete vezes. Teve certo desgaste com a religião ao longo da vida, mas mantém a força da fé. Perdeu todos os amigos da infância em função das drogas, presos ou mortos, mas seguiu os ensinamentos do pai, que dizia que era preciso aproveitar todas as oportunidades para aprender.

“A única maneira que consigo explicar minha trajetória é um toque divino.”