BOSTON — Em 1982, a iniciante galerista Mary Boone ouviu falar do trabalho do pintor Eric Fischl e foi visitar seu ateliê. Ao entrar, deparou-se com um quadro no cavalete que mostrava uma pintura a óleo de homens e mulheres nus em um barco.

Boone comprou a obra para sua galeria, então aberta há apenas cinco anos. O quadro em questão, The Old Man’s Boat and the Old Man’s Dog, se tornou um dos mais célebres trabalhos do artista, leiloado pela Christie’s em 2022 por US$ 4,14 milhões.

A história ilustra um dos casos em que Mary Boone estava no lugar certo na hora certa.

Seu timing e faro para a arte a transformaram na mais importante galerista dos anos 80 em Nova York – e a curadora perfeita para a exposição Downtown/Uptown, na Galeria Levy Gorvy Dayan, em Nova York, que traz uma retrospectiva da arte feita na cidade no período, um movimento que a galerista acompanhou de perto.

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“Ao trazer Mary para o projeto, conseguimos obter um tipo diferente de autoridade — tanto por sua voz, já que ela era a rainha do Soho, quanto pelo fato de estar profundamente conectada a muitos desses artistas. Isso abriu muitas portas e permitiu que os próprios artistas se envolvessem na mostra,” Brett Gorvy, um sócio da galeria e co-curador da mostra, disse ao Brazil Journal. 

“Hoje em dia, cada artista tem sua própria galeria, seu próprio espaço e sua própria carreira. Uma exposição como esta, portanto, permite resgatar aquele senso de comunidade, aquele sentimento de conexão entre eles.”

A mostra vai até 18 de dezembro e vem tendo uma reação do público acima do esperado. Com obras de artistas como Jean-Michel Basquiat, Keith Haring, Andy Warhol, Jeff Koons, Francesco Clemente e Guerilla Girls, a exibição atrai não só quem viveu a época, mas também um público jovem que vê na atualidade alguns dos dilemas dos anos 80 retratados nas obras.

Segundo Gorvy, a mostra atrai em média 700 pessoas por dia nos finais de semana e mais de 300 por dia durante a semana, um número acima da média para a cidade. “As pessoas estão voltando à galeria justamente por esse tipo de exposição. Ela fala sobre estar presente, sobre fazer parte, de fato, da comunidade. Esta é a exposição mais popular que já realizamos em termos de resposta do público,” disse o co-curador.

Perguntei a Boone o porquê do sucesso com o público mais jovem. Ela respondeu que, diferente de outras décadas, a geração dos anos 80 em Nova York deve ser exaltada por atingir todo o seu potencial.

“Na década de 60, olhando em retrospecto, aquele período foi definido por cinco ou seis artistas importantes. Depois, no início dos anos 80, parecia que a década seria marcada por um número semelhante de artistas. A importância desta exposição está no fato de ser surpreendente quantos artistas conseguiram realizar seu potencial, tornando os anos 80 uma outra década notável,” Boone disse ao Brazil Journal.

A própria Boone deveria se incluir na lista de pessoas que atingiram seu potencial no período. O nome da exposição pode ser entendido como uma referência a sua trajetória no mundo da arte, já que ela trouxe a criatividade crua dos ateliês de Downtown Manhattan para as galerias refinadas de Uptown.

Boone abriu sua primeira galeria em 1977, na 420 West Broadway, no mesmo prédio que Leo Castelli e Ileana Sonnabend – os mais importantes dealers de então – tinham suas galerias. Em meados da década de 1980, mudou de endereço, abrindo na rua 57. Sua capacidade de transitar entre os dois mundos foi essencial para que ela conectasse a vibrante cena cultural da época com o dinheiro que circulava na alta sociedade nova-iorquina.

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“O título Downtown, Uptown reflete de forma muito consciente a ideia desses artistas que começaram em Downtown com a aspiração de chegar a Uptown – onde Andy Warhol estava, na 66th Street, e o [restaurante] Mr. Chow na 57th Street. Era basicamente ali que eles se reuniam à noite, além dos clubes no centro, das discotecas, do Mud Club e de outros lugares assim. Mas essa noção de ascensão, ou pelo menos de aspiração a ela, é algo com que todos nós ainda convivemos,” disse Gorvy.

A exposição também marca uma espécie de “reestreia” de Boone no mundo da arte. Em 2019, ela foi presa após ter sido acusada de declarar gastos pessoais, incluindo US$ 24.380 em salões de beleza e quase US$ 14.000 na Hermès, como despesas de sua galeria, totalizando cerca de US$ 3 milhões em sonegação de impostos. A prisão provocou também o fechamento da galeria que levava seu nome.

Boone ficou detida entre maio de 2019 e junho de 2020 em uma prisão célebre por receber detentas famosas, como Lauryn Hill e Teresa Giudice, e logo voltou aos negócios. 2022 foi seu melhor ano até agora por conta da pandemia, “porque todos estavam em casa pensando em como preencher os espaços na parede,” ela disse ao site Vulture.

A trajetória de altos e baixos da galerista pode muito bem ser representada por uma das principais obras na exibição da Levy Gorvy Dayan: um saco de boxe personalizado de Jean-Michel Basquiat com o nome de Mary Boone, que mostra não só a proximidade dela com os artistas da época, mas também faz uma analogia com sua resiliência, ainda que a obra tenha sido feita anos antes da prisão da galerista.

Mas por que as obras daquele período são tão marcantes?  Boone destaca o espírito da época em uma Nova York que buscava reconstrução.

“Após a depressão dos anos 1970, os anos 1980 foram vibrantes e otimistas, mesmo tendo sido marcados pelo terrível avanço da Aids. A década inaugurou uma nova era de otimismo, beleza, emoção, humor e espiritualidade. Acredito que isso levou ao atual nível de introspecção que vivemos hoje.”

Gorvy ressalta ainda os aspectos universais tratados nas obras como outro fator que as mantém relevantes quase 40 anos depois.

“O que muitas pessoas perceberam é que essa arte ainda parece bruta, ainda parece autêntica, ainda se conecta profundamente com muitas das questões que preocupam os artistas de hoje. Este foi, essencialmente, o ponto de partida para grande parte dessas discussões, que continuam atuais. Acho que esta exposição não apenas expressa isso como também mostra que ainda há muito mais a ser explorado.”

A exibição reúne 78 obras de 25 artistas espalhadas nos dois andares do prédio estilo belas-artes onde a Levy Gorvy Dayan está sediada. 

Entre as principais obras em exposição estão as bolas de basquete flutuantes da série Equilibrium, de Koons, suspensas em tanques com água destilada e cloreto de sódio, o polêmico quadro Spiritual America, de Richard Prince, o retrato Untitled (1982), de Basquiat, e o autorretrato Name (1983), de Clemente.

A mostra também traz artistas mais ligados ao mundo do grafite, como Keith Haring e Kenny Scharf, que fazem um contraponto à arte figurativa dos outros artistas.