A ANS está propondo a maior mudança regulatória do setor de saúde suplementar nos últimos 20 anos, com uma série de alterações nas regras dos reajustes que, se adotadas como estão, prejudicariam a rentabilidade das operadoras num momento de melhora da sinistralidade.

Mas as propostas ainda são preliminares e passarão por discussões envolvendo todas as companhias e demais stakeholders.

“Pautar esses temas é algo bom. A abertura para a conversa é algo bom. Mas a maneira como as propostas vieram é definitivamente ruim,” disse o CEO de uma grande operadora. “Mas não está nada fechado. Ainda teremos 45 dias para discutir as propostas e chegar num desenho que seja melhor para o setor.”

Para esse executivo, a ANS colocou em pauta todos os itens que ela entende ser polêmicos — e que de fato precisam ser debatidos. “O problema é que o nosso setor não está acostumado a sentar e discutir abertamente os problemas.”

Gustavo Ribeiro, o presidente da Abramge, a associação das operadoras de saúde, disse que o que pegou o mercado de surpresa foi o fato da ANS ter mudado bruscamente seu discurso.

“Nos últimos meses, a ANS vinha com um discurso de tratar da revisão técnica [dos planos individuais], que é um tema benéfico para o setor. Mas quando ela veio com a consulta, ela colocou mais duas dúzias de assuntos que não estavam no radar de ninguém.”

Ribeiro disse que os assuntos tratados são muito densos e “mexem com pilares do sistema. São temas estruturantes, que precisam ser discutidos com muita calma,” disse ele.

Gustavo Ribeiro ok

O presidente da Abramge disse ainda que a entidade vai pedir uma extensão do prazo de 45 dias à ANS para apresentar estudos mais aprofundados sobre os temas propostos. 

Alexandre Fioranelli, um dos diretores da ANS, disse ao Brazil Journal que todas as propostas apresentadas já estão em discussão desde o início de outubro, quando a agência abriu uma audiência pública, e são temas debatidos há anos.

“Não é uma surpresa para ninguém [esses assuntos]. Ninguém foi pego de calça curta,” disse ele, acrescentando que somando todos os prazos de discussão abertos pela agência — de outubro até o início de fevereiro — serão quatro meses de debate. 

Apesar das ponderações, as propostas caíram como uma bomba no mercado, com o maior impacto sendo sentido pela Hapvida, cuja ação desabou essa semana ainda mais do que o mercado. 

“Muitas das propostas indicam uma regulação mais pesada sobre os planos de saúde, particularmente na regulação dos aumentos de preços dos planos corporativos,” escreveram os analistas do Itaú BBA. 

“Isso pode potencialmente anular uma melhora na rentabilidade das empresas do setor, e subsequentemente do resto do sistema de saúde privado.”

Nos planos corporativos, a ANS propôs três mudanças principais. 

Hoje, os planos corporativos com até 29 vidas seguem um framework regulatório diferente: as operadoras colocam todos num mesmo ‘pool’ e dão um mesmo reajuste para todos. A proposta da ANS é ampliar este modelo para contratos com até 1000 vidas. 

Num comunicado ao mercado, a Hapvida disse que “a utilização de um agrupamento maior poderá ter um efeito contrário ao pretendido, já que, ao impor um reajuste acima do necessário, aqueles contratos com mais vidas que hoje não estão no pool de risco terão, necessariamente, que sofrer um reajuste mais elevado a fim de compensar os contratos com menos vidas.”

Segundo a operadora, os planos que compõem hoje o pool de risco (até 29 vidas) são mais sujeitos à seleção adversa e, por isso, “precisam ter esse custo maior repassado aos preços dos produtos de maneira a manter o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos.”

O diretor da ANS tem uma visão diferente. Para ele, ao aumentar o pool de risco será possível diluir mais os reajustes dos contratos com mais sinistralidade, “dando um reajuste menor para todo mundo.”

A ANS também quer definir uma porcentagem mínima de 75% de ‘sinistralidade meta’ no cálculo dos reajustes, outra proposta amplamente criticada pelo mercado. 

“Artificializar nunca se mostrou uma boa saída e nunca será,” disse Ribeiro, da Abramge. “Não tem como driblar a realidade. No passado, quando se ‘artificializou’ o sistema nos planos individuais, o que aconteceu foi que esse produto quase sumiu da prateleira e isso encareceu os outros produtos.”

Ribeiro diz que ao controlar o reajuste dos planos individuais, a ANS fez com que muitos desses produtos se tornassem deficitários. “Foi uma proteção ao consumidor, mas ao fazer isso ela pressiona os outros produtos, que precisam sofrer reajustes maiores para compensar esse desequilíbrio.”

A Hapvida também criticou a proposta. 

“Um limite arbitrário pode se mostrar superior ao necessário, levando à restrição de oferta de produtos, ou pode se mostrar inferior ao necessário, levando a um valor de referência que encarecerá o produto de forma geral para os beneficiários,” disse a operadora.

Já o diretor da ANS diz que a agência não pretende e não vai interferir na precificação dos planos de saúde. “O valor inicial de venda do plano continuará sendo definido pela operadora, e isso que vai definir a margem de lucro. O que queremos é que o reajuste seja realmente compatível com a variação de custos,” disse ele. 

“Esse número de 75% é uma média que tivemos do mercado e que ainda estamos abertos a discutir. Além disso, não vamos definir qual indicador a operadora vai escolher para fazer o reajuste. Não necessariamente ela precisaria fazer o reajuste em cima da sinistralidade meta.”

Outra medida que seria ruim para o setor, na visão do mercado, é a limitação da coparticipação dos planos para 30% do valor do procedimento e da mensalidade. A ANS está propondo ainda que a coparticipação não possa ser cobrada em diversos procedimentos, especialmente terapias crônicas, oncologia e hemodiálise. 

“A coparticipação tem sido uma ferramenta importante para endereçar o uso excessivo observado no sistema de saúde privado, principalmente por conta do conflito de interesses entre as operadoras e os provedores de serviços. A implementação da coparticipação em alguns contratos foi crucial para os operadores moderarem os aumentos de preços,” escreveu o Itaú. 

“Portanto, essa potencial mudança poderia mitigar as melhoras da sinistralidade das companhias e potencialmente limitar a venda de novos planos por conta dos altos preços de entrada.”

Apesar das mudanças prejudiciais, há uma discussão no relatório que agradou as operadoras: a revisão técnica dos reajustes dos planos individuais. 

Hoje o reajuste desses planos é definido pela ANS, que historicamente tem aplicado aumentos abaixo da inflação médica, tornando esses planos deficitários para as operadoras. 

A ANS disse que está estudando uma metodologia para a admissão, cálculo e implementação dessa revisão técnica — que poderia levar a reajustes maiores desses planos em casos específicos. 

“Essa é uma discussão muito importante para as operadoras, e o fato da ANS entrar nesse tema é positivo. O problema é que nesse relatório inicial ela está dizendo que a operadora tem que provar insolvência para ter acesso a essa revisão, o que é um absurdo,” disse um executivo do setor. 

Alexandre disse que a ANS é sensível às preocupações do setor e que o objetivo da revisão é justamente “manter a oferta desses produtos e garantir que o desequilíbrio das carteiras individuais não leve a uma quebradeira geral.”

“Mas precisamos construir uma metodologia para isso que defina os requisitos para poder acessar essa revisão e as contrapartidas. A revisão vai ser para alguns casos, não para todos,” disse.