O neurologista inglês Oliver Sacks celebrizou-se como um defensor da medicina humanizada e um mestre da literatura de não-ficção sobre sofrimento psíquico. Seus livros narram os dramas de seus pacientes com calor humano e sensibilidade lírica. 

Agora, uma reportagem publicada este mês na revista The New Yorker está borrando essa imagem, mostrando que detalhes importantes de obras como Tempo de Despertar eram invenções do autor.

Alguns estudos de caso publicados por Sacks foram colocados em dúvida por seus pares quando o autor ainda era vivo. A novidade trazida pela New Yorker é que o próprio escritor admitiu, em escritos pessoais e confidências a amigos, que costumava embelezar os fatos.

A revelação deu a outra celebridade da ciência – o psicólogo canadense Steven Pinker, professor de Harvard – a oportunidade de botar em dúvida a integridade jornalística da própria New Yorker, que, afinal, publicou contribuições de Sacks de 1992 até meses antes da morte do autor, aos 82 anos, em agosto de 2015.

Pinker atacou, em particular, o reputado departamento de checagem de fatos da revista centenária (muito incensado, aliás, em The New Yorker at 100, documentário recente da Netflix). Mas elogiou o trabalho de Rachel Aviv, a jornalista responsável pelo exposé publicado agora.

Rachel teve acesso a cartas, diários e gravações conservadas pela Oliver Sacks Foundation – um acervo documental na maior parte inédito e carregado pelo peso das dúvidas e culpas de seu autor. Homossexual, Sacks testemunhou os movimentos de liberação gay dos anos 1960, mas só se encorajou a sair do armário já no fim da vida, depois de décadas de celibato.

Este homem reprimido, diz Rachel, projetou sobre seus pacientes (ou personagens) sua crença na narrativa literária como uma via para a cura ou para a auto-aceitação. E essa ideia de uma cura subjetiva conquistou leitores.

Nos anos 1980, o sucesso de seus livros abriu um novo subgênero literário dedicado a relatos médicos. Na Faculdade de Medicina de Harvard, os alunos eram incentivados a escrever um livro sobre um paciente.

A fineza de estilo, porém, não pode substituir o rigor científico – e nem deve dispensar a honestidade. Sacks inventou diálogos e falsificou fatos.

O exemplo mais escandaloso talvez seja o dos gêmeos autistas que são tema de um ensaio de O homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu, livro de 1985. Sacks conta que eles passavam horas recitando números. Em meio ao tratamento, ele descobriu que esses números eram todos primos – e alguns chegavam a vinte dígitos.

Dois artigos publicados por outros médicos que trataram os gêmeos não documentam qualquer habilidade com números primos. Uma carta sobre o caso escrita pelo próprio Sacks em 1973 tampouco atribui dons matemáticos extraordinários aos irmãos autistas.

Nos diários, Sacks deixou um registro transparente sobre o livro em que tomou essas liberdades ficcionais extremas:

“Culpa ficou maior desde ‘Chapéu’ por causa de (entre outras coisas)

Minhas mentiras,

falsificação”

Em outra passagem, Sacks reconhece um elemento de “horrenda criminalidade” em seus estudos de caso. Admite que concedeu a seus pacientes “poderes (começando com poderes de fala) que eles não têm”  

Rachel Aviv trata as mentiras de Sacks – e a culpa que ele sentia por publicá-las – com compassiva sobriedade. Steven Pinker, ao contrário, aproximou-se do sensacionalismo nos comentários sobre a reportagem que fez no X:

“Bomba! Oliver Sacks (um homem humanitário e ensaísta refinado) inventou muitos detalhes de seus famosos estudos de caso, enganando neurocientistas, psicólogos e os leitores em geral por décadas.”

Por que, questionou o autor de O Novo Iluminismo, uma revista que “perpetua o mito” de que checa minuciosamente cada linha publicada manteve Sacks como colaborador por décadas? A pergunta é pertinente, sobretudo porque em momento algum o artigo de Rachel menciona que Sacks foi um colaborador da revista (as falsificações expostas em sua reportagem, porém, são quase todas anteriores à relação de Sacks com The New Yorker).

Pinker oferece outros exemplos de textos eivados de erros científicos que a checagem de The New Yorker deixou passar. E diz que Sacks se ajustou bem à revista porque ela é submissa às “sensibilidades culturais” de uma elite “beletrista” que despreza o pensamento racional cultivado por uma elite rival – a turma da ciência e da tecnologia, da qual o próprio Pinker faz parte.

De certa forma, The New Yorker at 100 – o documentário da Netflix – confirma o tal viés beletrista da revista. A narração em off, na voz de Julianne Moore, frequentemente ressalta as qualidades literárias da revista.

Marcadamente institucional, o único momento de autocrítica de The New Yorker at 100 diz respeito a um texto no qual os artifícios literários parecem ter se sobreposto ao relato objetivo: a reportagem de Truman Capote sobre um crime brutal no Kansas, origem do livro A Sangue Frio.

As liberdades ficcionais de Capote na reconstituição de diálogos seriam talvez comparáveis à passagem de Tempo de Despertar na qual Sacks apresenta um paciente sem cultura literária citando um poema de Rilke.

Pinker está certo em exigir mais rigor em artigos e reportagens científicas. Ao enquadrar o problema em uma guerra cultural entre letrados e cientistas, porém, ele roça no conspiracionismo: a New Yorker, afirma ele no encerramento de seu fio no X, dissemina lorotas concebidas para “semear dúvidas” sobre o valor da racionalidade.

Em Tábula Rasa, livro de 2002, Pinker já se mostrava hostil à cultura literária – e em particular às manifestações artísticas derivadas do modernismo, que ele pinta como contrário à natureza humana.

Os desvios literários de Sacks, porém, tinham uma matriz mais antiquada e sentimental: não por acaso, ele comparou, nos diários, seus pacientes a personagens de Charles Dickens. Em um momento amargo, o neurologista reconheceu que também se converteu em um personagem: “O bom e velho Sacks, humanista de plantão”.