Muitas obras de ficção – na literatura, teatro e no cinema – demonstram pudor ou timidez em carregar nas tintas ou mostrar os recortes mais crus ao retratar a realidade.
Em certos casos, os autores não parecem ter vivido suficientemente os mundos que descrevem. Ou, ao contrário, conhecem tão bem os seus meandros que amenizam os cenários reais e ocultam qualquer familiaridade, talvez por constrangimento de terem feito parte daquele mundo.
Definitivamente, este não é o caso de Succession, que volta domingo que vem para sua terceira temporada na HBO.
A série explora a luta pelo poder na alta cúpula de um conglomerado de mídia e entretenimento – emissoras de rádio e TV, jornais, parques de diversão e linhas de cruzeiros.
Com a saúde combalida, o patriarca Logan Roy (interpretado pelo excepcional Brian Cox) é obrigado a tratar de sua sucessão. Os quatro filhos, hienas de dentes afiados, com suas idiossincrasias à mostra, entram num ferrenho embate.
Logan não deve nada aos grandes vilões da literatura: maneja as marionetes à sua volta, esgarçando as relações de família até o ápice da disfuncionalidade. É quase shakespeariano. No primeiro episódio da segunda temporada, por exemplo, a família chega à casa de campo e um odor insuportável invade os ambientes. Há algo de podre no reino dos Roy.
Nessa família ficcional, a cultura do medo e da submissão domina todas as relações. Quem já passou por esses ambientes tóxicos percebe nas figuras de Succession o caráter adulador, interesseiro, ardiloso que ainda se encontra em alguns ambientes familiares e profissionais.
Reconheço todas essas atitudes. Tive que conviver com personagens assim – na vida real – e alguns desses papéis eu mesmo exerci, até para aprender a não errar novamente.
Logan Roy é adepto daquele management style hegemônico nos anos 70: a gestão por conflito. Seja pelo prazer da manipulação, por capricho ou interesse, Logan estimula o embate, promete o que for preciso, acena com posições e poderes, apenas para descumprir o combinado logo em seguida. E o pior: diverte-se com o que provoca.
Numa cena antológica, um patético e invertebrado genro oferece ao patriarca aniversariante um relógio de milhares de dólares, seguindo o conselho da mulher: “Meu pai tem tudo. Dê qualquer coisa de US$ 10 mil.” Para constrangimento do genro, o presente é recebido com escárnio por Logan, que despreza o marido da filha.
Minha avó, a matriarca do grupo fundado por seu pai, herdou dele também as ferramentas para o exercício do poder. Era uma mulher muito rica, poderosa e temida. “Temor reverencial,” como ela mesma gostava de dizer.
Nos aniversários dela, todos enfrentávamos o dilema do genro: o que dar para vovó, que tinha tudo? Minha solução: dar presentes carregados apenas de significado emocional, como singelas balas de leite, na sinalização daquilo que eu enxergava como seus desejos.
Em Succession, sempre que Logan sai de helicóptero, os filhos brigam pelo privilégio de acompanhá-lo. Minha vó tinha o assento ao seu lado igualmente disputado – e havia os preteridos e preferidos de ocasião.
As semelhanças não param por aí. Brian Cox constrói um Logan de figura intimidadora. Ele é fisicamente maciço. Impõe temor pelo olhar gelado. Reproduz a força projetada por muitos grandes empresários, uma energia gravitacional que atrai todos ao seu redor e transmite uma aura de infalibilidade. Em um embate empresarial, essa atmosfera até pode ser produtiva. Afinal, a imagem todo-poderosa e infalível do pai para a criança pequena permanece no inconsciente infantil que persiste no fundo de todos nós. E é até mesmo bem aproveitada na construção das imagens imperiais – vi minha vó se valer desta tática na condução dos negócios.
Na contramão da figura infalível, ofuscante, me parece que a real essência do líder está em trazer à tona os enganos cometidos e as lições aprendidas, desfazendo o papel de divindade. A tentativa de se manter num pedestal, cercado de adoração, é caminho quase certo para uma queda fragorosa.
Meu bisavô, Alberto Soares de Sampaio, fundador da refinaria União em 1954, então a maior do Brasil, mantinha um escritório no prédio em que também ficavam outros grandes nomes dos negócios, como Walther Moreira Salles, dono do Unibanco, e José Luiz Bulhões Pedreira, o advogado e autor da Lei das SA. Nesse mesmo escritório, na mesma mesa onde ele trabalhou, recebi, um dia, sua carteira de ações.
Era um calhamaço, uma pilha de quase meio metro de papéis. Papéis que contavam, pensei, a história de sucesso daquele homem. Mas para minha surpresa, ao examinar folha por folha descobri uma enorme quantidade de equívocos em investimentos que não deram certo – 90% das empresas que vovô escolherá haviam quebrado.
Os muitos erros, felizmente, foram compensados por poucos grandes acertos: um deles, as ações das empresas que mais tarde viriam a formar a Ambev.
Os filhos devem conhecer os erros e as inseguranças dos pais, sem a luz intensa da fantasia. Durante um processo sucessório saudável, principalmente em âmbito familiar, acho fundamental que condições justas de proximidade e participação sejam oferecidas a todos. Justas – mas não iguais, até porque as personalidades e a realidade se enfrentam de maneira diferente.
Logan Roy faz o oposto. Joga com os filhos-peões em clima de eterna tensão, em vez de provocar uma competição que deixasse espaço para a cooperação. Estabelece, assim, a anti-sucessão: perpetua a própria imagem construída ao longo de décadas, reprimindo e sufocando a necessária oxigenação trazida pela geração seguinte.
Na vida real, a sucessão requer planejamento, não apenas transferir o comando para os filhos. Parece-me fundamental dar a eles confiança para que trilhem seus próprios caminhos.
No meu caso, desejo que minhas filhas não sejam escravizadas pela perpetuação das minhas vontades, convenientemente travestida de preocupação com o futuro. Elas precisam descobrir o que desejam, à luz de seu próprio tempo, espaço e talento.
Logan Roy jamais aceitaria isso, talvez porque seria admitir sua própria mortalidade.
Frank Geyer Abubakir é empresário e controlador da Unipar.