“Vai levar deiz pau!” Durante toda a minha infância e boa parte da adolescência, essa frase se tornou uma espécie de mantra. Era uma das marcas registradas de Aracy de Almeida (1914-1988), uma das juradas do Show de Calouros do Programa Silvio Santos, onde destilava um delicioso mau humor para qualquer incauto que se arriscasse ao posto de crooner da noite.
Tempos depois, descobri que ela, conhecida pelo apelido de “Araca”, era uma cantora – e das boas. Aracy foi, entre outras, uma das intérpretes que deu voz ao repertório de Noel Rosa (1910-1937). Principalmente na década de 1950, quando o “poeta da Vila” tinha sido relegado a um injusto esquecimento.
A primazia sobre o repertório de Noel foi apenas uma das muitas qualidades de Aracy Teles de Almeida, nascida em 19 de agosto no Encantado, região da zona norte do Rio de Janeiro.
Sua discografia inclui ainda um bom punhado de sambas-canção, uma linda parceria de Antônio Maria com Vinicius de Moraes (Quando Tu Passas por Mim, de 1953) e uma composição de Caetano Veloso (A Voz do Morto, de 1968, que logicamente ecoa Noel Rosa).
Quer mais? Mário de Andrade (1893-1945) elogiou seu jeito nasal de cantar; numa conferência de 1943, ele disse que Aracy tinha “uma ótima cor de vogais e menos feliz prolação de consoantes.”
Ela ainda se apresentou ao lado do Joelho de Porco, que trazia o epíteto de “o primeiro grupo punk brasileiro” (na verdade, mais uma bravata de seu fundador, o baixista e vocalista Tico Terpins). “Ao Vivo e à Vontade,” de 1980 (lançado somente depois de sua morte), foi um projeto de Terpins e Zé Rodrix, que registraram uma apresentação dela no Teatro Lira Paulistana, em São Paulo. “E agora com vocês, o meu pai, Aracy de Almeida,” brinca Terpins, logo no início.
A fama de maior intérprete de Noel Rosa nasceu nos anos 50, quando Aracy recuperou o catálogo do compositor, que havia sido relegado ao ostracismo logo após a sua morte. Mas a amizade data dos anos 1930.
O chamado “Poeta da Vila” a conheceu num programa de rádio. No início, não deu bola para a pequena candidata a crooner. Mas depois de vê-la cantar, chamou-a para sair e a presenteou com a composição Sorriso de Criança.
“Daí em diante passei a conhecer com ele os piores lugares do Rio de Janeiro. No rádio, havia gente que franzia o nariz diante de nós. Éramos tidos como gente que não prestava,” desabafou em depoimento a João Máximo, o biógrafo de Noel.
A amizade dos dois era tanto que Noel deu de presente a Aracy sua última composição, Último Desejo. “Noel me chamou na casa dele. Estava magro, de pijamas. Mostrou a música, pegou o violão e cantamos juntos. Três dias depois ele morreu,” ela disse no programa de entrevistas Vox Populi, da TV Cultura.
A relação era tão próxima que muitos acreditavam se tratar de algo além da amizade. “Nada, Noel gostava de mulata,” esquiva-se Aracy. Os seus relacionamentos pessoais eram mantidos em segredo. “O homem dos meus sonhos nasceu morto,” dizia, sempre que era perguntada.
Sabe-se, no entanto, que ela teve dois relacionamentos. José Fontana, o Rey, um goleiro do Vasco com quem se envolveu no final dos anos 30. E Capita, um coronel-médico reformado que foi seu par mais constante no final dos anos 50.
Um de seus maiores momentos artísticos se deu quando passou a se apresentar nas boates do Rio, entre elas a Vogue e a Zum Zum, no final dos anos 40.
Ali, não apenas trouxe uma nova luz às composições de Noel como angariou grandes amizades – entre elas Antônio Maria, Vinicius de Moraes, Dorival Caymmi e Sérgio Porto, entre outros, todos amigos da boemia.
As boas companhias, aliás, nunca lhe faltaram. Aracy andava com os pintores Di Cavalcanti (autor da capa Os Sambas de Noel Rosa, de 1954, que traz arranjos do maestro Radamés Gnatalli), Aldemir Martins e Dener, o famoso costureiro. Que, aliás, criou o figurino que virou sua marca registrada: calça comprida, porque ela já não ficava bem em vestidos; bota ortopédica, pois tinha pés chatos, e as famosas camisas e óculos de armação grossa. “Eu não uso salto porque tenho pés chatos,” disse Aracy no mesmo Vox Populi, ao ser perguntada sobre o porquê do visual de “machona.”
Aracy de Almeida está no imaginário popular por causa de suas aparições no Show de Calouros. Ali, com perdão da repetição, o show era dela. Era onde Aracy podia finalmente ser Aracy, com toda a rabugice à qual tinha direito. “Eu sou aquilo mesmo. Personagem é o Pedro de Lara,” disparou, falando de um companheiro de júri.
Silvio Santos era doido pela cantora. Quando ela adoeceu, ele a ajudou financeiramente e ligava todos os dias para a amiga. Aracy morreu em 20 de junho de 1988, de embolia pulmonar. Tinha 73 anos.
Aracy também viu o futuro. No mesmo Vox Populi, perguntada sobre a moda da discoteca, declarou: “Daqui a pouco, vai todo mundo cantar pelado!”
Diante da leva de intérpretes rebolativas que hoje cantam em trajes sumários, não é que ela tinha razão? “Vai levar MAIS que dez pau!””