Dentre as muitas dúvidas que pairam sobre o caso Americanas, uma das maiores é como a empresa conseguiu passar anos sendo “inconsistente” na contabilidade sem levantar suspeitas.
Por que os mecanismos de controle, feitos para pegar erros e fraudes, não funcionaram?
Em longas conversas com o Brazil Journal, executivos de bancos credores dizem que havia suspeitas, mas a empresa sempre dava explicações para o que estava fora do padrão.
Na época, essas explicações pareciam suficientes, mas agora ficou claro que “ouvimos uma série de mentiras”, diz um desses executivos.
Os credores disseram haver questionado a empresa, mais de uma vez, sobre o tamanho da exposição de suas instituições na conta que reunia as operações de financiamento a fornecedores na modalidade risco sacado.
Ao menos dois credores disseram ao Brazil Journal que chegaram a ter, cada um, entre 70% e 80% do saldo total de risco sacado em alguns anos. Essa participação era calculada usando como referência o saldo informado no balanço: sabe-se agora que ele era menor que o real.
“Como era uma participação elevada, perguntávamos o motivo e a empresa dizia que estava priorizando o nosso banco, porque oferecíamos condições melhores, e as operações com outras instituições eram irrelevantes,” diz um executivo.
“Mas na verdade, eles estavam escondendo o tamanho real da conta, que era muito maior, e dando as mesmas explicações para todos os bancos credores,” diz outro executivo, que afirma ter essa explicação falsa por escrito.
Em tese, isso poderia ser checado. Os bancos poderiam ver o tamanho real da dívida da Americanas no Sistema Central de Riscos (SCR), do Banco Central, que reúne todas as operações de crédito feitas por uma empresa – com informações sobre empréstimos vencidos e a vencer, prazos, limites disponíveis e o número de instituições que financiam a companhia.
No SCR, cada banco consegue enxergar suas próprias operações com o devedor, e o total de operações feitas por todos os bancos com aquela empresa.
Segundo um credor, até 2020, o SCR não mostrava nada de anormal na conta de risco sacado da Americanas. Naquele ano, o sistema informava um saldo de R$ 4 bilhões nessa modalidade de crédito. No balanço da empresa, o volume era de R$ 7 bilhões.
Essa diferença se deve ao fato de que nem todo financiamento a fornecedores é antecipado pelos bancos, e no SCR aparecem apenas as operações bancárias.
Em 2021, porém, houve uma inversão: o SCR mostrava um total de R$ 10,5 bilhões em empréstimos na modalidade risco sacado; mas, no balanço, havia apenas R$ 8,5 bilhões.
No primeiro trimestre de 2022 (o último dado disponível), a diferença aumentou: R$ 13 bilhões no SCR e apenas R$ 5 bilhões no balanço, segundo esse credor.
“Não fazia sentido. Novamente, questionamos a empresa e ouvimos que isso se devia a problemas do SCR, que era melhor usar os dados do balanço,” disse o executivo de um banco.
Advogados e banqueiros ouvidos pelo Brazil Journal disseram que as informações do SCR têm uma defasagem de até 90 dias e que o sistema, às vezes, apresenta falhas operacionais.
Além disso, é possível que operações de risco sacado tenham sido contabilizadas em outra conta no SCR.
“Os bancos tendem a usar o SCR como mais um mecanismo para analisar as informações de uma companhia. Se têm dúvidas, pedem explicações e decidem como seguir,” diz uma advogada. “A questão é se foram céticos o suficiente.”
“Olhando pelo retrovisor, talvez pudéssemos ter sido mais céticos. Mas jamais imaginaríamos que uma empresa como a Americanas estaria cometendo fraude,” afirma um credor.
Para um banqueiro que não é credor da empresa, “a Americanas era um crédito óbvio, não parecia haver motivos para ficar de fora.”
Essa reconstituição da história que está sendo feita pelos credores tem lacunas, que eles tentam preencher com explicações.
A Americanas informou um rombo contábil de cerca de R$ 20 bilhões. O SCR de 2022 mostra uma diferença de R$ 8 bilhões entre a conta risco sacado do balanço e a do SCR. Esse valor evoluiu para os R$ 20 bi em menos de um ano? Ou existem outras “inconsistências”?
Além disso, no SCR, a diferença aparece apenas no informe de 2021. Mas, no infame call de 12 de janeiro, o ex-CEO Sergio Rial disse que as inconsistências contábeis vinham sendo praticadas há vários anos. Como?
Para buscar as respostas, Bradesco, Itaú e Santander entraram com ações judiciais de produção antecipada de provas, cujo objetivo é conseguir acesso a documentos que possam mostrar o que aconteceu de fato com a contabilidade da Americanas – e quem pode ser responsabilizado pelo rombo.
Dois bancos relataram que, entre 2016 e 2017, a Americanas pediu que não informassem operações de risco sacado nas cartas de circularização enviadas às auditorias.
Essa carta é usada pelas auditorias para verificar as informações dos balanços.
Os credores explicaram ao Brazil Journal que informam às auditorias (e também ao SCR) apenas o que é dívida bancária, e uma operação de risco sacado só se torna dívida bancária se há uma renegociação (uma extensão de prazo, por exemplo) da Americanas com os bancos.
Caso contrário, ou seja, quando são mantidas as condições negociadas entre banco e fornecedor, o risco sacado deve entrar na conta de fornecedores da Americanas, e aparecer na carta de circularização enviada pelos fornecedores.
“É sempre bom lembrar que a responsabilidade pelas informações que estão no balanço é da empresa,” diz um credor.
A Americanas enviou ao Brazil Journal o seguinte posicionamento:
“A Americanas S.A. informa que foram detectadas inconsistências contábeis e que o Conselho de Administração, tão logo se deu conta do caso, sinalizou o compromisso em divulgar a apuração e criou um comitê independente que está apurando as circunstâncias que ocasionaram as inconsistências. Todos os órgãos sociais (conselho, diretoria e comitês) estão trabalhando conjuntamente com o objetivo de manter as operações da companhia de forma adequada.”
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