Em primeiro lugar, vamos tentar esquecer essa obsessão brasileira pelo Oscar. Desde a chamada retomada do cinema nacional, em 1995, parece que o nosso complexo de vira-lata só será aliviado caso a estatueta da Academia de Hollywood ocupe a estante de algum dos nossos realizadores.

Talvez faça sentido, mas, independentemente de qualquer indicação ou prêmio, Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, que estreia em 7 de novembro, é um grande filme, o mais importante realizado no Brasil desde Cidade de Deus, dirigido por Fernando Meirelles e Kátia Lund em 2004.

Os dois longas mostram um país em diferentes guerras – a da ditadura militar e a do crime organizado – e, ao colocar na tela estas feridas, reverberam questões negadas por parte dos brasileiros.

Baseado no livro biográfico de Marcelo Rubens Paiva, Ainda Estou Aqui recupera a tragédia que se abateu sobre a família do escritor no auge da repressão. No verão de 1971, no Rio de Janeiro, o ex-deputado Rubens Paiva (representado por Selton Mello) foi levado por homens à paisana para prestar depoimento em um quartel – e nunca mais voltou.

Sua mulher, Eunice (Fernanda Torres), até então uma dona de casa, viu-se sozinha com cinco filhos e travou uma revolução em busca da verdade.

É através da jornada pessoal de Eunice que o contexto político é apresentado ao espectador – e isto amplifica a capacidade de comunicação do filme, inclusive com as plateias estrangeiras. Salles sublinha o caráter universal da obra ao oferecer um drama íntimo deflagrado por uma conjuntura histórica.

A Eunice de Fernanda Torres é carregada de humanidade e propicia à atriz o desempenho mais arrebatador de uma carreira já bastante profícua no cinema. A intérprete transita com uma emotividade controlada em todos os arcos da personagem, sem cair no melodrama ou apelar para a obviedade de construir a protagonista como uma heroína.

Ela é uma mãe desafiada pelo destino e precisa de firmeza para enfrentá-lo.

O próprio Selton Mello, um ator que impõe traços tão marcantes aos seus tipos, concebe o ex-deputado com uma economia surpreendente. O que se vê é um sujeito comum, pai amoroso e marido dedicado. Sua fala é monocórdica e condiz com a de um homem do seu tempo.

Duas cenas contrastam a revolta e a tomada de consciência de Eunice em imagens que dispensam diálogos. Na primeira, a protagonista volta para casa depois de 12 dias presa e se esfrega raivosamente debaixo do chuveiro. Em outra, a matriarca aparece com os filhos em uma sorveteria cercada de pessoas que saboreiam a sobremesa como se nada acontecesse lá fora. O olhar atônito de Fernanda Torres expõe a compreensão de que Rubens Paiva não voltará mais e é hora de assumir as rédeas da vida.

Eunice, então, pega os filhos, liga o motor do carro e volta a morar em São Paulo. Aos 48 anos, formou-se advogada e se tornou especialista em direito indígena. O roteiro, premiado em Veneza, trabalha muito bem o salto cronológico para meados da década de 1990, sem oferecer explicações gratuitas ou deixar pontas soltas que dificultem a compreensão.

Um exemplo é a rápida cena em que uma funcionária do fórum pede um autógrafo a Marcelo Rubens Paiva (vivido na fase adulta por Antonio Saboia). A moça saca um exemplar do livro Feliz Ano Velho, grande sucesso editorial lançado por ele em 1982, e comenta sobre o acidente que o colocou em uma cadeira de rodas.

Walter Salles ganhou projeção em Terra Estrangeira, codirigido por Daniela Thomas em 1995 e que tinha Fernanda Torres em um dos papéis principais. Mas sua consagração veio com Central do Brasil, vencedor do Festival de Berlim em 1998, premiado com o Globo de Ouro no ano seguinte e a chance mais concreta que o Brasil teve até hoje de ganhar um Oscar. Além da indicação de filme internacional, o longa colocou Fernanda Montenegro na disputa de melhor atriz – algo raríssimo de acontecer para um trabalho que não seja falado em inglês.

Em comum, os três filmes tratam da ausência familiar em decorrência da conjuntura do País. Em Terra Estrangeira, um jovem (vivido por Fernando Alves Pinto) viaja para a Europa na tentativa de realizar o sonho da mãe recém-falecida (Laura Cardoso) de visitar a cidade dos antepassados. Central do Brasil coloca uma professora aposentada e um menino (Vinicius de Oliveira) na estrada rumo ao Nordeste. Ele acaba de perder a mãe, e a personagem de Fernanda abraça a missão de entregá-lo ao pai no Nordeste.

Em Ainda Estou Aqui, o cinema brasileiro ainda ganha um presente para a eternidade: vemos Fernanda Montenegro – mãe de Fernanda Torres – assumir o papel de Eunice nas cenas finais. 

Este epílogo mostra uma reunião da família Paiva na década de 2010 com a personagem acometida pelo mal de Alzheimer. Sentada na frente da televisão, Eunice, que morreu em 2018, aos 86 anos, reconhece a imagem do marido e esboça uma reação que dá a entender que ela não está totalmente desconectada da realidade.

Se em Central do Brasil a carga melodramática se impunha e as lágrimas saltavam com facilidade, Ainda Estou Aqui atravessa mais de duas horas deixando o espectador com um nó na garganta, entre a revolta por causa da violência e a admiração pela postura combativa de Eunice. Em tempos de exaltação feminista, não custa lembrar que ela seria uma das tantas mulheres de imenso potencial que, devido ao sistema machista, terminaria escondida no lar se não fosse a reviravolta detonada pela ditadura.

Pelo menos na tela, Eunice engoliu o sofrimento e contrariou quem esperava dela o luto eterno. “Nós vamos sorrir. Sorriam!”, disse ela aos filhos, contrariando o fotógrafo de uma revista que foi pautado para fazer um retrato menos feliz dos Paiva.Sua história de superação, agora, ganha o mundo em dezenas de festivais e, se vier o Oscar, provavelmente será merecido, mas não altera em nada a relevância de Ainda Estou Aqui como registro de uma época que não pode ser esquecida.