Zé Ibarra entrou no radar do grande público ao participar de A Última Sessão de Música, a derradeira turnê de Milton Nascimento.

Ele era o vocalista de registro agudo da banda, e tinha um momento solo espetacular: cabia a Ibarra interpretar San Vicente, de Milton e Fernando Brant, que faz parte de Clube da Esquina, o álbum recentemente apontado como o melhor trabalho da música brasileira em todos os tempos.

Mas Ibarra está longe de ser um principiante. O artista de 28 anos tem mais de uma década de carreira, participou de dois grupos icônicos da cena independente e é responsável por um dos melhores discos deste ano.

AFIM, que chegou em junho às plataformas de streaming, é um trabalho diversificado, com influências do pop sofisticado de Marina Lima ao tropicalismo de Caetano Veloso, da soul music carioca (a chamada Black Rio) a canções que denotam um lado experimental.

Uma combinação de bom tom de música popular de origem alternativa.

Mas afinal, quem é esse sujeito? José Vítor Ibarra Ramos nasceu no Rio, filho de uma produtora de eventos e um fotógrafo. Despertou para a música aos dois anos e aos quatro ganhou de presente o clássico Elis & Tom, que reuniu os talentos de Elis Regina e Tom Jobim. Mais tarde, foi aplicado por álbuns de jazz e MPB pelos pais e estudou piano clássico (Chopin e Debussy estão entre seus autores eruditos prediletos).

Em 2014, Ibarra formou o Dônica, que também trazia em sua formação Tom Veloso (violão) e Lucas Nunes (guitarra e atual diretor musical da banda de Caetano Veloso). O grupo, que tinha como inspiração o rock progressivo e as canções do Clube da Esquina (leia-se o disco/movimento criado por Milton Nascimento e Lô Borges, que trazia ainda Beto Guedes, Toninho Horta e Wagner Tiso, além dos letristas Fernando Brant, Márcio Borges e Ronaldo Bastos) soltou Continuidade dos Parques em 2015 pela Sony Music.

Até que, em 2019, durante as preparações para o trabalho seguinte do conjunto, Ibarra recebeu o convite de participar da turnê Clube da Esquina, do próprio Milton. “Foi tudo meio seco e eu fiquei: ‘Como assim? Toco teclado, piano, violão, mas não considero que toco bem assim’,” ele disse na época.

O tributo ao Clube da Esquina rendeu elogios de artistas de alta patente como Ney Matogrosso e Gal Costa (que o convidou para um dueto na nova versão de Meu Bem, Meu Mal, que ela gravou em 2020) e conexões com nomes da nova geração – entre eles a cantora Duda Beat, com que gravou uma versão acústica de Bédi Beat, e o conjunto mineiro Daparte, que contou com os vocais de Ibarra na canção Pescador.

O período da pandemia rendeu ainda outro projeto ambicioso: o Bala Desejo, formado pelo vocalista e violonista ao lado de Dora Morelenbaum, Julia Mestre e Lucas Nunes. Criado em meio às lives promovidas pela cantora Teresa Cristina, o quarteto emulava a sonoridade dos anos 1970, em especial a dos Doces Bárbaros – o combo formado por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal Costa. Sim Sim Sim, que eles lançaram em 2022, ganhou o Grammy Latino na categoria Melhor Álbum Pop em Português.

A carreira solo de Zé Ibarra é constituída por dois discos: Marquês, 253, de 2023 (o título faz alusão ao endereço do prédio em que ele ficou confinado durante a pandemia), e agora, AFIM.

Se a estreia era marcada pelos arranjos franciscanos – voz e violão e olhe lá – AFIM é um trabalho no qual se faz acompanhar por uma banda (um dream team da nova MPB autóctone, formado, entre outros, pelo baixista Alberto Continentino, o guitarrista Lucas Nunes, o baterista Thomas Harres e o trio de metais Copacabana Horns), mas que mantém uma característica de sua estreia. Ibarra evita a ansiedade de querer se mostrar como compositor e abre espaço para as criações de terceiros.

“Eu achava que minha carreira estaria acabada se fosse cantar músicas de outros compositores,” ele disse ao Brazil Journal. “Me descobri como intérprete ao participar da turnê do Milton.”

AFIM traz duas criações de Sophia Chablau (Hexagrama 28 e Segredo, rock acelerado que Zé transformou em pop à la Marina Lima), uma do ex-parceiro de banda Tom Veloso (Morena, que traz ecos do Clube da Esquina), Maria Beraldo (Da Menor Importância, de tom experimental) e Ítallo França (a delicada Retrato de Maria Lúcia).

Transe e Infinito em Nós são da lavra do próprio artista, e Essa Confusão traz uma parceria dele com Dora Morelenbaum, sua companheira de Bala Desejo.

AFIM é um retrato da melhor MPB que tem sido produzida no País.