Depois que Bianca Mirabili revelou aos pais que gostaria de cursar gastronomia, sua mãe descobriu que a filha de uma vizinha era recém-formada no mesmo curso e havia acabado de abrir uma pequena confeitaria de bairro, que iria atender sob encomenda, com entrega de cupcakes, bolos e ovos de chocolate.
Foi na época da Páscoa que Bianca, ainda no último ano do ensino médio, começou a trabalhar, sem experiência, na produção de doces, acelerada pelas circunstâncias do calendário.
Saía da escola no começo da tarde e ia direto para a confeitaria. Dois dias por semana, escapava do batente para a aula de inglês e depois retornava à cozinha, onde às vezes ficava até de madrugada.

“Meu pai ia me buscar; os pais dela ajudavam a embalar os ovos e colocavam no carro para fazer as entregas. Era uma mobilização total.”
Pouco depois, quando ingressou na faculdade, a única certeza que Bianca tinha era que não queria atuar como confeiteira, relembra a mulher que hoje, ironicamente, é a líder das sobremesas no Evvai, um dos raros restaurantes com duas estrelas Michelin em São Paulo.
Na verdade, Bianca tinha outra certeza: queria estagiar no Fasano. Para garantir um trabalho, no entanto, disparou seu currículo para mais de 30 restaurantes. O único que a retornou foi… justamente o Fasano. Saiu da Zona Leste, onde morava, de camisa e sapato de salto alto na bolsa, que calçou antes de se apresentar ao RH.
Nos três meses de estágio que se sucederam, Bianca se dedicou ao preparo dos clássicos petit fours, na confeitaria – telhas de amêndoas; fisális banhada em chocolate; biscoitinhos em formato de língua de gato.
Algumas sextas-feiras, era convidada a observar – apenas observar – a cozinha do restaurante em operação, na hora do jantar. Repetia esse ritual com a frequência que podia e, nessas ocasiões, era seu pai que ia buscá-la à meia-noite, quando o metrô já havia parado de funcionar.
À época, Luca Gozzani já era o chef italiano à frente do Fasano, e marchava os pratos num microfone. “A cozinha era enorme, e era aquilo que eu queria.”
Bianca almejava a praça das carnes ou das massas, mas encerrou seu estágio sem sair da confeitaria. Dedicou-se mais tarde ao trabalho de conclusão na faculdade, em que esboçou um restaurante do zero, no qual o cardápio fazia referência aos sete pecados capitais. Nesse intervalo, para ganhar algum trocado, fazia bico como caixa no mercado de bairro de seu pai.
Seu pai, aliás, embora nunca tenha se formado, sempre foi um trabalhador nato, do qual se orgulha escancaradamente. Há anos, faz manutenção de fornos de padaria –um de seus maiores clientes é a Galeria dos Pães. Aspirava, para sua filha, a função de instrumentadora cirúrgica.
Diante do desejo de Bianca de estudar gastronomia, a desencorajou. “Ele disse que eu ia ficar com a barriga no fogão, teria que trabalhar aos finais de semana e feriados; não ia ter hora para sair. Aí, falei que, então, ia ser como ele, que tem que atender chamados inesperados de clientes a qualquer hora e a qualquer dia.”
Ingressou em sua segunda vaga de estágio, no restaurante Salvatore Loi, chefiado pelo italiano que dava nome à casa, hoje extinta, com a promessa de que seria uma função rotativa, em que passaria pelos vários setores da cozinha. Algumas mudanças de rota, porém, a confinaram de novo à confeitaria.
O mesmo espaço foi assumido depois de alguns solavancos pelo chef Luiz Filipe Souza, hoje à frente do Evvai, duas-estrelas Michelin, do qual Bianca é responsável por toda a confeitaria.
No início, fazia bases de sorvetes e de tortas, cuidava dos caramelos e, um pouco na marra, passou a achar tudo aquilo menos chato, em suas palavras, e foi ganhando uma autonomia que a levou a ser contratada como confeiteira, formalmente.

“O Luiz foi um mestre, pegou na minha mão, disse que ia me ensinar e me ajudar a criar as sobremesas e assim eu assumi a confeitaria.” Sua primeira receita, um símbolo de sua trajetória, foi um pão de mel. Não um simples e óbvio pão de mel.
Bianca usou, em sua construção, cinco meles diferentes de abelhas nativas, sem ferrão, com características únicas e particulares, que criaram nuances de texturas e sabores. “Eu nem sabia da existência dessa variedade gigante de mel.”
Embora remetesse o pão de mel à sua infância, quando ia à padaria com os pais tomar café da manhã, nunca foi afeita ao mel, em si. “Sempre associei a remédio. Minha mãe me dava uma colherada com limão e até o cheiro já me enjoava.”
O mel tradicional, porém, era muito diferente dos produtos que veio a conhecer tardiamente, que adotou em sua primeira sobremesa, na qual combinou um bolo de especiarias e mel, creme de speculoos, um sorvete e um caramelo aerado, o honeycomb.
Seu processo de criação, hoje mais apurado, costuma partir da eleição de um ingrediente. “A partir do ingrediente, penso nas combinações de sabores e nas técnicas que vou adotar. Depois, penso como quero apresentá-lo: entremet, sorvete, musse? A apresentação geralmente é a última etapa”, explica a confeiteira, que também seleciona louças em diálogo com o conceito estético do Evvai. “Esse raciocínio de criação é o que mais gosto na cozinha.”
Bianca tem nos livros uma fonte de inspiração, enriquecida pela variedade de ingredientes brasileiros, que são descobertas constantes a serem exploradas. “Nosso trabalho é como qualquer outro: a gente precisa estudar para o resto da vida. Temos sempre muita coisa para aprender.”
Esse esforço intelectual é encaixado em uma rotina que criou ao lado de Luiz Filipe Souza, com quem trabalha há oito anos e namora há cinco –hoje, moram juntos em uma casa ajardinada com labradores e gostam de jogar tênis.
O sonho de Bianca, que nos primórdios desgostava da confeitaria, é abrir um misto de padaria e confeitaria no espaço colado ao Evvai, pequenininho. “Quero desenvolver um trabalho com pães, fazer bolos e doces de vitrine, que ainda conheço pouco.” A promessa é abrir seu negócio no próximo semestre, com duas mesinhas, take away e alguns doces sob encomenda.
“Hoje, fico vendo a equipe trabalhar na praça das carnes, com fritadeira, Jósper, e acho aquela gente louca. Fico na confeitaria, no ar-condicionado, sabe, e nem consigo me imaginar fazendo outra coisa.”






