Passada a eleição de maio, que o presidente Recep Erdogan venceu por uma margem estreita, a Turquia está trocando a feitiçaria heterodoxa pela boa e velha ortodoxia econômica.
Erdogan, que comanda o país há duas décadas, nomeou uma equipe ortodoxa em junho, tão logo foi proclamado reeleito, e desde então vem se afastando de seu experimento monetário iniciado em 2021, quando tentou provar na prática uma bizarra teoria segundo a qual o corte dos juros reduziria a inflação.
Sob o comando de Hafize Gaye Erkan, uma executiva com passagem pela Goldman Sachs e que foi co-CEO do First Republic Bank nos EUA, o Banco Central turco vem subindo rapidamente os juros, num ritmo acima do previsto pelo mercado.
Na última reunião, na semana passada, a taxa básica foi elevada de 35% para 40% ao ano, a maior em duas décadas. Foi o sexto aperto seguido desde as eleições.
Em maio, quando os turcos foram às urnas, a taxa estava em 8,5%. Logo em junho, o BC elevou-a para 15%, dando início ao ciclo de aperto.
Em termos reais, contudo, os juros ainda permanecem em território negativo. A inflação recuou dos picos acima de 80% ao ano atingidos em 2022, mas se mantém acima de 60%.
Em seu comunicado recente, o BC disse que o atual nível dos juros está próximo do patamar necessário para “estabelecer o curso da desinflação,” indicando a possibilidade de uma alta residual.
Pelas projeções do BC turco, a inflação deverá recuar abaixo de 40% no próximo ano, numa trajetória de convergência gradual para a meta de 5%.
Adepto de um capitalismo de estado com intervenções pesadas na economia, Erdogan sustentou o crescimento da economia nos últimos anos com uma política de rápida expansão do crédito. Sua política é de uma cepa similar à dos peronistas argentinos – que acabam de ser derrotados – e de ‘desenvolvimentistas’ à la Dilma Rousseff e Guido Mantega.
Os desequilíbrios turcos foram se acumulando, com um aumento no déficit externo e a desvalorização da lira, o que pressionou ainda mais a inflação. A resposta do Governo foi fazer novas intervenções e controles de capital.
A presidência do BC se transformou numa ‘cadeira elétrica’: foram quatro trocas de comando desde 2019.
Em 2021 veio a cereja do bolo heterodoxo, com o experimento monetário.
O mundo vivia uma disparada inflacionária em meio à pandemia. O Brasil e outros países de política econômica ortodoxa seguiram o manual e subiram os juros.
Erdogan, entretanto, decidiu colocar em prática as ideias de um conselheiro… De acordo com essa teoria alternativa, juros mais elevados na verdade alimentam a inflação, no lugar de combatê-la. Isso aconteceria porque a queda no custo do financiamento para as empresas traria preços mais baixos.
A taxa básica de juros, que era de 19% em 2021, começou a ser derrubada até chegar aos 8,5%.
O resultado, como previsto pelo velho livrinho de economia, foi justamente o contrário. A falta de credibilidade na política monetária fez com que as expectativas de inflação disparassem, com os empresários antecipando reajustes futuros nos preços. A lira perdeu ainda mais valor. O custo de crédito para o consumo subiu.
O descontrole nos preços por pouco não custou a reeleição a Erdogan. Mas, distribuindo benefícios às vésperas da eleição, ele saiu novamente vitorioso e agora promete trazer a inflação para um dígito.
O presidente chamou de volta para o seu gabinete o economista Mehmet Simsek, que reassumiu o Ministério das Finanças, que já havia ocupado entre 2009 e 2015. Antes de seguir carreira política, Simsek foi estrategista da Merrill Lynch em Londres.
Em uma entrevista ao Financial Times, Simsek afirmou que o programa de ajustes busca “esfriar a demanda e estabilizar a economia.”
“Estamos no caminho correto,” disse Simsek. “Há evidências de que a confiança está se recuperando, mas precisamos de paciência. Ainda é desafiador.”
Simsek tem colocado pessoas market friendly em postos-chave na gestão da economia, como a nova presidente do BC, Hafize Erkan, de 41 anos, uma especialista em risk management e a primeira mulher a chefiar o BC turco. Nascida em Istambul e formada em Engenharia Industrial, Hafize fez seu PhD em Princeton, na área de Financial Engineering.
Em outro sinal de rendição à ortodoxia, um novo diretor do BC foi economista do Fed de Nova York.
A dúvida, segundo os analistas, é até que ponto Erdogan deu o braço a torcer e se convenceu das mazelas causadas pelo seu experimento – ou se a mudança de curso será apenas um recuo parcial em suas movimentações para preservar o poder.
Sergi Lanau, diretor para estratégia de países emergentes da Oxford Economics, estima que no próximo ano, com as eleições de governadores e prefeitos, Erdogan voltará a priorizar o crescimento econômico ao custo do controle inflacionário.
A política econômica melhorou de maneira marcante desde a eleição, escreveu Lanau. Mas o estrategista lembrou que a Turquia tem um histórico de inflar o crescimento de curto prazo por meio do crédito bancário, trazendo desequilíbrios subsequentes.
“Acreditamos que a política será mais frouxa com a aproximação das eleições,” disse Lanau.
Muita gente no mercado brasileiro temia que Lula, em seu terceiro mandato, tomasse um caminho semelhante ao da Turquia ou da Argentina. Não é segredo que alguns de seus colaboradores mais fiéis nutrem há tempos um carinho pela heterodoxia. Mas, até aqui, prevaleceu, em linhas gerais, a ortodoxia, com o BC agindo de maneira independente.
“Temos um arranjo macro ortodoxo, ainda que meio a contragosto,” disse Luciano Sobral, economista-chefe da Neo Investimentos. “O custo da heterodoxia no início de governo seria grande, com alta do dólar e da inflação. Se alguma loucura for tentada será mais perto da eleição.”