Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, conheceu a professora Estela Dora Quiroga de Arenaz em seu primeiro ano primário, numa escolinha pública modesta de Flores, o bairro de Buenos Aires onde ele cresceu.

O ano era 1943. Dos 28 alunos da turma, o pequeno Bergoglio, com 6 anos de idade, era o mais aplicado. Virou o queridinho da mestra. Estela repetia que o garoto, franzino e desde então fanático por futebol, um dia seria alguém muito importante.

Começou ali, na sala de aula da escola Coronel Engenheiro Pedro Antonio Cerviño, ainda em funcionamento numa rua arborizada e de pouco movimento, uma amizade singela que romperia as barreiras do tempo.

Para além de alfabetizar o menino que sete décadas mais tarde seria escolhido o primeiro papa latino-americano da história, a professora de Jorge Mario Bergoglio se tornaria sua confidente. Para Bergoglio, ela foi quase uma segunda mãe, como ele mesmo viria a definir em “Esperança”, a autobiografia que lançou no início deste ano.

“Lembro-me de todos os meus professores. (…) A primeira se chamava Estela Dora Quiroga de Arenaz, com quem estabeleci uma relação bonita e profunda. Fiz com ela os dois primeiros anos”, registrou. Logo em seguida, Francisco lembrou no livro que foi com Estela que ele entendeu, ainda na infância, o que era o luto. “No primeiro ano, quando a mãe da professora Estela faleceu, vi-a voltar inteiramente vestida de preto, e entendi pela primeira vez o que era o luto. Nunca viemos a nos perder de vista, durante toda a vida”, continuou.

De fato, até a morte de Estela, em 2006, Bergoglio manteve com ela um contato estreito. Eles trocavam correspondências, se falavam ao telefone e, quando era possível, se visitavam. “Ele sempre teve três referências na vida: nossa avó, nossa mãe e a professora Estela”, me disse há alguns anos Maria Elena Bergoglio, irmã do papa.

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A professora morreu em abril de 2006, aos 96 anos, quase sete anos antes de seu aluno dileto assumir o Trono de Pedro. Mas, até o fim da vida, acompanhou muito de perto a trajetória do homem que viria a ser o papa Francisco.

Quando se tornou padre, no final da década de 1960, foi Estela quem ele convidou para ser sua madrinha. E assim acontecia a cada degrau que galgava na Igreja. Bergoglio fazia questão de compartilhar suas alegrias com Estela, a quem se referia solenemente como “Senhora Estela” ou “Senhora de Arenaz”.

De volta a Buenos Aires após ser nomeado cardeal pelo papa João Paulo II e receber em Roma o chapéu cardinalício, Bergoglio rezou uma missa festiva e lá estava Estela, já idosa, em lugar de honra, sentada no altar montado diante da fachada da Catedral Metropolitana. Ele mandou que o motorista da Arquidiocese fosse buscá-la em casa – e depois teve o cuidado de enviar para ela as fotos da cerimônia.

Os familiares de Estela contam que os dois gostavam de conversar sobre a vida. “Ele sempre telefonava aqui para casa e os dois falavam bastante”, ouvi em 2013 de Maria del Carmen, a filha mais velha da professora, que a acompanhou até o fim da vida.

Bergoglio tratava Estela, 26 anos mais velha, com respeito e reverência. A professora fazia as vezes de conselheira. Francisco, invariavelmente, pedia que ela rezasse por ele – como ficou registrado num cartão que o pontífice enviou em 26 de fevereiro de 2005, às vésperas do aniversário da professora:

“Querida senhora Estela,
Hoje viajo a Roma e no dia 6 não estarei aqui para saudá-la por seus 95 anos. Desejo-lhe feliz aniversário. Nesse dia, oferecerei a missa por você. Que Jesus te bendiga e que a Virgem Santa te proteja. Por favor, peço que continue rezando por mim.
Com todo carinho,
Jorge Mario Bergoglio”

Aquela viagem a Roma, onde João Paulo II vivia seus últimos dias, seria determinante para o destino de Bergoglio.

Um mês e meio após embarcar e selar o bilhete para a professora, ele participaria da eleição do sucessor de João Paulo II, o alemão Joseph Ratzinger.

Naquele conclave, o próprio Bergoglio esteve perto de ser eleito papa – ele chegou a ter 40 votos, com chances de ganhar os seguintes, até que, como ficou registrado nos relatos de vaticanistas, pediu aos demais integrantes do Colégio de Cardeais que optassem por Ratzinger. O gesto seria determinante para sua eleição no conclave seguinte.

Assim como os telefonemas, as cartas a Estela de Arenaz também eram frequentes. Bergoglio nunca deixava passar em branco uma data festiva.

“Lhe faço chegar uma afetuosa saudação com meus melhores desejos de um feliz e santo Natal,” escreveu num cartão enviado em 2003 e guardado como relíquia pela família da professora (veja nas imagens).

Ao final do texto, manuscrito, com letras caprichosamente desenhadas, o pedido recorrente que Bergoglio seguiria fazendo mesmo depois de se tornar papa: “Por favor, peço que reze por mim.”

A professora era católica, mas não frequentava regularmente a igreja. “Ela preferia rezar em casa,” lembrou Alicia, sua segunda filha, quando a visitei na casa da família, em Buenos Aires, pouco após o aluno mais destacado da professora Estela ser escolhido papa.

A amizade estreita fazia com que Estela, já idosa e vivendo sozinha com a filha, se sentisse à vontade para recorrer a Jorge Bergoglio sempre que necessitava de um favor.

Quando Maria del Carmen, a filha primogênita, sofreu um assalto na rua, a professora ligou para o então arcebispo da capital argentina. Bergoglio prontamente enviou um funcionário da catedral para ajudá-la a registrar queixa na polícia e a tirar novos documentos.

“Ele era como um filho para ela. Toda vez que se referia a Bergoglio, ela levava as mãos ao peito, e falava com muito carinho. Contava muitas histórias. Ela dizia que, desde pequeno, ele era muito aplicado e que um dia seria alguém muito, muito importante,” me disse naquela mesma semana de 2013 Monica Quiroga, sobrinha de Estela. “Quando ele se tornou cardeal, ela ficou orgulhosíssima,” emendou.

A filha e a sobrinha de Estela mantinham fresca na lembrança, àquela altura, a última visita que Francisco fez à professora. Como era comum em suas andanças por Buenos Aires nos tempos em que era arcebispo, ele chegou de ônibus – Caballito, o bairro de classe média onde Estela viveu até o fim da vida, fica entre o centro da cidade, onde está localizada a catedral, e Flores, o distrito onde Bergoglio nasceu e que costumava frequentar regularmente.

Monica Quiroga, a sobrinha, conta que um dia a campainha do sobrado onde Estela morava tocou. À porta estava um emissário de Bergoglio, em busca de notícias sobre a professora. Provavelmente, disse Monica, ele havia mandado que o auxiliar fosse até a casa porque tentou ligar, mas ninguém atendia o telefone. A professora tinha morrido dias antes. Bergoglio estava em Roma. O funeral de Estela, em 18 de abril de 2006, reuniu sete pessoas. Faltou o filho que ela nunca teve.

Rodrigo Rangel é diretor de redação do PlatôBR, o novo site independente que cobre a política brasileira.

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