O ano que passou foi, para dizer o mínimo, desconcertante. A chegada da pandemia e o seu inimaginável impacto em diversas dimensões trouxeram um novo padrão para o funcionamento das cadeias globais de suprimento. Padrão esse marcado por um clima inédito de instabilidade e imprevisibilidade que impôs um desafio sem precedentes para o funcionamento da economia mundial.

Esse nível de instabilidade, no entanto, permanece atual e deve pavimentar o tortuoso caminho que as empresas terão de percorrer para continuar operando no futuro, em um contexto no qual as cadeias de suprimento assumirão um caráter ainda mais estratégico, pois passarão a ser uma grande alavanca de criação (ou destruição) de valor.

A situação no Brasil é especialmente desafiadora, pois aqui a otimização das cadeias tem enfrentado barreiras estruturais históricas que têm gerado logísticas complexas e ineficientes.

A partir de agora, as empresas aumentarão seus investimentos na eficiência da cadeia de suprimento, e alguns grupos receberão atenção redobrada, em especial, as empresas que dependem do comércio global (como, os setores de commodities agrícolas, produtos farmacêuticos e químicos); empresas com cadeias de suprimento longas ou complexas, (como as indústrias automotiva, aeroespacial, eletrônica e de processamento de alimentos); e empresas fortemente influenciadas por novos canais de vendas (como varejistas de alimentos, eletrônicos, vestuário e bens de grande consumo em geral).

Os desafios que serão enfrentados pelas cadeias de suprimento podem ser agrupados em seis grandes naturezas, da mais urgente às que envolvem estratégias de mais longo prazo:

   1. interrupções e processos de ramp-down/ramp-up mais frequentes nas cadeias, gerando indisponibilidade de bens e serviços por atingir matérias-primas, insumos e componentes;

   2. fortes variações na demanda, com queda para alguns itens devido a lockdowns ou perda de confiança do consumidor, e aumento para outros bens específicos;

   3. dificuldades financeiras afetando empresas, fornecedores e clientes e gerando a necessidade de se reduzirem custos;

   4. mudanças no valor relativo de moedas, gerando aumentos inesperados nos gastos com a logística internacional;

   5. maior instabilidade jurídica e regulatórias diante da possibilidade de os governos tomarem medidas vigorosas para conter a propagação do vírus e o aprofundamento da crise econômica;

   6. necessidade de se criarem novas diretrizes para o trabalho nos centros de distribuição e logística.

Para mitigar esses efeitos, algumas práticas de excelência estão tendo um papel fundamental para o surgimento das próximas cadeias globais de suprimento.

Torre de Controle

No primeiro momento da pandemia, foi importante as empresas darem uma resposta instantânea para contornar as barreiras que surgiram nas cadeias de suprimento. O foco nessa etapa foi maximizar o fluxo de caixa das operações e otimizar o inventário em toda a cadeia de valor, garantindo a continuidade dos fluxos. A urgência desse estágio exigiu a rápida elaboração de uma visão realista da demanda de curto prazo, com reduções rápidas de gastos. Nessa ocasião, as torres de controle de despesas entraram em cena como um instrumento de austeridade e segurança para enfrentar o primeiro impacto da crise.

Vale pontuar que mesmo depois de todos esses meses, a COVID-19 continua gerando perturbações relevantes nas dinâmicas de consumo. O contexto inicialmente envolveu um aumento brusco na demanda por alimentos e medicamentos (impulsionado por “compras de pânico”) e cortes significativos em despesas não obrigatórias, viagens e combustível, seguindo a necessidade de se preparar para uma eventual redução da renda e, consequentemente, dos gastos familiares. Hoje, o contexto é marcado por sucessivas alterações nas regras para a abertura do comércio, e o funcionamento dos setores de serviços e das escolas, por exemplo. Soma-se a isso a inserção em diversos países de programas de auxílio às parcelas da população mais afetadas, injetando liquidez na economia e dificultando uma clara leitura dos impactos de longo prazo no poder de consumo da população.

Todos esses fatores suscitam a manutenção de um estado de alerta: ainda que o perfil da crise tenha mudado ao longo dos últimos meses, o grau de instabilidade se mantém.

Após as medidas tomadas na primeira reação à crise, agora é preciso promover a estabilidade operacional. Este segundo momento inclui uma revisão dos principais processos da cadeia de suprimento e a análise das muitas possibilidades existentes, implementando-se mudanças que sejam resultado de um processo analítico que avalia as particularidades de cada negócio. Isso envolve processos que passam por:

Suprimento Estratégico

Para melhorar a estabilidade do fornecimento, algumas empresas devem buscar alternativas múltiplas de fornecimento em vez de se concentrarem em fontes únicas, alavancando efetivamente os Centros de Global Sourcing. No que tange ao monitoramento e à negociação de matéria-prima, a verticalização pode ser uma forma de reduzir os riscos da cadeia. Isso é verdade sobretudo para indústrias muito dependentes de cadeias de suprimento longas e complexas e poucos fornecedores, ou em situações nas quais a logística tornou-se uma vantagem competitiva.

Digitalização e adoção de Advanced Analytics

Na hora de fortalecer a interface entre planejamento de vendas e operações, a tecnologia tem trazido diversas soluções para permitir uma maior transparência da cadeia em todos os níveis. Digital e Advanced Analytics estão revolucionando a forma como as cadeias de suprimento são monitoradas. O uso dessas ferramentas tem se tornado ainda mais urgente em tempos como os atuais, nos quais a simples utilização do histórico dos dados acumulados ao longo dos anos tem seu valor diminuído e um maior nível de granularidade e precisão tornam-se essenciais para adaptarmos os modelos preditivos. 

Omnicanalidade

Esta crise afetou fortemente os varejistas até então muito dependentes de lojas físicas, e está forçando uma adaptação rápida à ascensão das vendas online e da omnicanalidade. No entanto, isso não significa que as lojas tradicionais irão desaparecer. Muitas, na realidade, terão que se reconfigurar para atuarem como centros avançados de distribuição local.

A principal consequência dessa extensa transformação é uma maior maturidade no trato estratégico das grandes cadeias globais. As empresas estarão mais sensíveis e mais conscientes da necessidade de mitigar os riscos de seus negócios e de tomar medidas que as protejam.

Neste momento, apenas começamos a compreender como devem ser as cadeias de suprimento do futuro: ainda não está claro qual será o novo cenário resultante da implementação das citadas alavancas em cada setor da economia, do estabelecimento de novas parcerias ao longo do ciclo produtivo e da digitalização dos processos.

Qualquer que seja o cenário, surgirão cadeias mais eficientes, resilientes, digitais e provavelmente mais verdes. Os benefícios ambientais amplamente divulgados dos lockdowns devem levar a um aumento da pressão social pela sustentabilidade, e algumas atividades altamente poluentes passarão a ser percebidas como totalmente dispensáveis.

Passado 2020, fica claro que ainda temos um longo e desafiador caminho pela frente, e a única certeza que podemos ter é a de que as coisas não voltarão a ser como eram antes.

Vicente F. Assis é senior partner da McKinsey e líder B2B na América Latina.

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