Em 1990, quando a Bloomberg News entrou em operação, muitos olhavam torto para aquela insólita novidade: um ‘jornal eletrônico’ desenhado por engenheiros e dirigido por um cara do mercado financeiro.

Era comum investidores, banqueiros e corretores baterem o telefone na cara dos repórteres que ligavam em busca de informação.

De lá pra cá, a mídia tradicional saltou de crise em crise – sofrendo com a internet, as redes sociais e as ‘fake news’ – mas a Bloomberg se consolidou como uma das fontes de informação mais confiáveis.

Muito da credibilidade conquistada se deve ao jornalista Matt Winkler, um veterano do Wall Street Journal convidado por Mike Bloomberg para estruturar e dirigir o serviço de notícias oito anos depois que o terminal Bloomberg havia entrado em operação. 

A legitimidade foi construída com muita disciplina – e a aplicação implacável do ‘Bloomberg Way,’ o manual de estilo e princípios editoriais concebido por Winkler, como o jornalista explica na entrevista abaixo.  

Winkler, que foi editor-chefe da Bloomberg News até 2015 e desde então ocupa o cargo honorário de editor-chefe emérito da publicação, veio a São Paulo para o lançamento no Brasil do Bloomberg Journalism Program, o primeiro na América Latina, em parceria com a Faculdade Cásper Líbero.

O treinamento foi criado em 2017, numa colaboração com a Hussman School, da University of North Carolina, e hoje já tem programas em Berkeley e na University of London.

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Antes de voltar a Nova York, Winkler conversou com o Brazil Journal.

A Bloomberg prosperou nos últimos 20 anos enquanto outros veículos sofreram para se adaptar à internet. Como a empresa está se preparando para essa nova onda de disrupção tecnológica representada pela IA?

Em 1982, quando o terminal Bloomberg surgiu pela primeira vez, há duas palavras que resumem a inovação trazida para o mercado. Essas palavras são valor relativo.

Até a Bloomberg aparecer, era difícil saber se algo estava barato ou caro. As pessoas que forneciam as informações aos investidores eram as mesmas que lhes vendiam os papéis. Havia todo tipo de conflito de interesses.

A Bloomberg então coletou informações sobre preços –  começando com dívida, e logo em seguida de quase todas as classes de ativos – e conseguiu mostrar aos fiduciários mais importantes do mundo (bancos centrais, fundos de pensão, fundos mútuos) o valor relativo de tudo o que eles tinham que comprar e vender diariamente.

Mike Bloomberg era um aspirante a engenheiro. Formou-se em engenharia na Johns Hopkins, foi para Harvard para obter um MBA, e em seguida para a Salomon Brothers. Enquanto estava na Salomon, ele teve a seguinte ideia: ‘E se pegássemos todas as informações que tínhamos na empresa e as colocássemos em um sistema para que todos pudéssemos compartilhá-las?’

A empresa realmente não apreciou o que ele havia criado, e quando ele saiu, após 16 anos, ele criou o terminal Bloomberg como o conhecemos. Forneceu valor relativo, o que foi uma inovação extraordinária, não apenas porque revolucionou o mundo financeiro mas também o mundo das notícias.

Foi necessária muita programação de computador – e toda essa programação antecipou os algoritmos e, claro, o que hoje chamamos de inteligência artificial.

Então, a Bloomberg já estava se preparando para o século XXI e usando informações de todos os tipos para permitir que as pessoas tomassem decisões melhores, e tudo se resume a introduzir o valor relativo ao mundo dos investidores. Em sua infância, a Bloomberg já fazia, de uma perspectiva de engenharia, coisas que hoje são associadas à inteligência artificial.

Na época, a Dow Jones poderia ter feito a mesma coisa e não fez. A McGraw-Hill poderia ter feito a mesma coisa e não fez. A Reuters poderia ter feito a mesma coisa e não fez. Nenhuma empresa havia pensado em pegar todos esses dados e colocá-los em algum lugar.

É o dilema do incumbente. E como foi o início da Bloomberg News?

Nos primórdios, em 1990, éramos apenas uma startup de 15 pessoas em nosso primeiro ano. Não tínhamos como competir com as organizações de notícias.

O que fizemos foi o seguinte. Eu ia até os programadores, meus colegas na Bloomberg, e entregava a eles um template de 850 palavras com espaços em branco. Dizia que os espaços em branco eram para ser completados com dados que estávamos coletando em tempo real, de modo que, quando os espaços estivessem preenchidos surge uma matéria que parece ter sido escrita por um humano – e, na verdade, é uma história gerada por computador.

Bem, um humano escreveu, escreveu o modelo – e assim conseguimos produzir em nossos primeiros anos na Bloomberg News centenas de matérias, em vários fusos horários.

Poderíamos dizer o que aconteceu, mas não conseguíamos dizer o porquê. Então chegamos aos dias de hoje – e a IA pode te dizer o porquê. É isso que torna a IA tão valiosa para nós e, creio, para os nossos clientes.

Você pode acessar uma função no Bloomberg chamada DSX. A IA obterá todas as informações na base da Bloomberg, pesquisas, notícias, recomendações de analistas, tudo o que for relevante para o tópico.

E é totalmente factual, coerente com a forma como a Bloomberg começou – porque a Bloomberg começou apresentando ao mundo o valor relativo, e a AI hoje, é o ápice, por assim dizer, daquela visão original de Mike Bloomberg.

Na essência, é uma questão de qualidade da informação e dos dados, certo?

Quando Mike se candidatou a prefeito, ele costumava dizer: ‘In God we trust. Everyone else: bring data.

Esse era um slogan realmente apropriado, depois do 11 de Setembro. Nova York estava uma bagunça, para dizer o mínimo, e deprimida em todos os sentidos. O que Nova York mais precisava era de um engenheiro para consertar aquela situação problemática.

Esse slogan é, na verdade, a base do que esta empresa é. Trata-se de tentar resolver problemas, e a única maneira de resolver problemas é ter cada vez mais informações.

Então, para nós e para nossos clientes, IA é uma maneira de lidar com todos os tipos de situações desafiadoras, mas ter a capacidade de reunir todos os dados que temos para responder a uma única pergunta é extremamente valioso.

Mas tenho certeza de que você acredita que o estilo Bloomberg de escrever reportagens continua relevante hoje em dia. Poderia explicar o ‘Bloomberg way’ – os princípios que guiam o manual de redação da Bloomberg?

O ‘Bloomberg way’ foi essencial em 1990. Começamos sem um pedigree, sem linhagem, sem nada que indicasse que a Bloomberg News teria sucesso. E, na época, Mike Bloomberg era um banqueiro pouco conhecido de Wall Street.

Pelo menos da perspectiva da indústria jornalística, tínhamos credibilidade zero. Na verdade, éramos vistos com desconfiança.

Para mostrar a todos que o que estávamos fazendo não era apenas confiável, mas valioso como uma organização de notícias, precisávamos ter um método, um processo, um conjunto de valores e de melhores práticas, que mostrasse aos nossos clientes, aos nossos colegas no jornalismo, que o jornalismo que estávamos produzindo é algo com o qual você pode tomar decisões, algo em que você pode confiar, algo que o ajudaria a ganhar dinheiro.

Como fizemos isso? Bem, se vamos ser uma organização jornalística, temos que ser cinco palavras que começam com F – não essa que você está pensando.

Quais são essas palavras?

Temos que ser the first word – porque se você não for a primeira palavra, você não está no ramo de notícias.

Temos que ser the fastest word, porque se você não for o mais rápido, não está no ramo de notícias.

Temos que ser the factual word – porque se não é verdade, não é notícia.

Temos que ser the final word – porque no final das contas, o que isso significa para mim?

E temos que ser the future word – porque as pessoas querem saber: o que aprendemos hoje que vai me preparar para amanhã?

Mais fácil falar do que fazer. Como entregar isso no dia a dia? Pela minha própria experiência como repórter e editor, é muito difícil transmitir esse tipo de cultura e colocá-la em prática.

Como eu disse, confiamos em nossos engenheiros para produzir centenas de reportagens com a ajuda de um computador.

Mas também fizemos outras coisas. As notícias financeiras e de economia muitas vezes são regidas por um calendário. O governo vai divulgar o PIB em um determinado dia, ou a inflação. A Ford Motor Company divulgará seus lucros em um determinado dia.

Portanto, há notícias relacionadas ao calendário – para as quais você pode se preparar, certo? Se tiver uma certa quantidade de informações, pode antecipar o que terá que escrever naquela ocasião.

Além disso, coletamos estimativas de analistas. Então, temos todos esses dados – eles já estão lá, disponíveis.

Se você se preparar, poderá dizer que o número ficou acima ou abaixo do consenso. Se for maior, sabemos o que provavelmente acontecerá e quais serão as consequências para a empresa. Em outras palavras, saberemos o valor relativo dos eventos.

Preparamos modelos para todos esses eventos baseados no calendário, até mesmo para as decisões da Suprema Corte.

Fomos os primeiros a reportar o resultado da eleição em 2000, a confusa eleição americana daquele ano [quando a vitória de George W. Bush foi decidida pela Suprema Corte]. Estávamos muito à frente de todos os outros porque nosso repórter da Suprema Corte tinha preparado textos para 15 cenários diferentes da decisão dos juízes.

Sêneca disse: “A sorte começa quando a preparação encontra a oportunidade.”

O manual também impedia a publicação de reportagens sem a citação da fonte, ao contrário da tradição jornalística de escrever matérias a partir de fontes em off. Isso acabou mudando com o tempo. Por quê?

Naquela época, a atribuição anônima era quase onipresente no jornalismo. Em nossa primeira década da Bloomberg News, matérias com atribuição anônima não podiam ser publicadas.

Isso me tornou extremamente impopular. Os repórteres ficaram realmente ressentidos. Mas nosso objetivo era mostrar aos nossos clientes que, ao contrário dos nossos colegas, não publicaríamos algo a menos que as pessoas ou as empresas fossem identificadas como a fonte.

Acabamos mudando isso mais tarde – e a decisão foi totalmente impulsionada pelo julgamento jornalístico.

A última década do século XX, a década de 90, foi um período de forte expansão para a economia, e o mercado de ações prosperou. Durante esse boom, houve muitos negócios de fusões e aquisições.

Todas essas matérias eram obtidas anonimamente – vinham dos banqueiros que estavam fazendo os negócios. 

No final, tivemos que cobrir esse mercado, era uma demanda impulsionada pelo cliente. Ainda assim as informações precisam passar por todos os tipos de verificações muito rigorosas.

Mas, naquela altura, já estávamos estabelecidos.

No início, entretanto, tínhamos até mesmo dificuldades de acessar informações do governo.

Por quê?

Para cobrir a divulgação do PIB da época e todos aqueles números econômicos, tínhamos que ir ao Departamento do Trabalho ou ao Departamento do Comércio e ter uma credencial.

As pessoas que decidiam quem receberia as credenciais eram jornalistas. Eu conhecia o chefe do comitê, um ex-colega do Wall Street Journal. Eu perguntei: ‘Quando podemos obter nossas credenciais?’ E ele respondeu: ‘Bem, o que vocês são?’. E eu respondi: ‘Somos um jornal eletrônico.’ E não gostou nem um pouco da minha resposta.

Ele disse: ‘Bem, a única maneira de obter as credenciais é se suas notícias forem publicadas em um jornal, um jornal físico.’

Não tínhamos um jornal físico. Tínhamos um jornal eletrônico.

Todo problema é uma oportunidade. Então, ex-colegas que foram para o New York Times me perguntavam: podemos ter uma Bloomberg? ‘Claro. Vocês pagam o que o Deutsche Bank e outros bancos pagam, todos podem ter um terminal.’

Mas precisávamos estar em um jornal. Então, fui até Mike Bloomberg e disse: ‘Olha, não vamos ser o que queremos ser a menos que consigamos reportar em tempo real, a todo momento, tudo sobre a economia. Precisamos desse acesso. E a única maneira de conseguirmos esse acesso é se estivermos em um jornal físico. O New York Times quer um terminal de graça.’

E se disséssemos: ‘Vamos te dar o terminal, você decide se as nossas notícias são fit to print, a decisão é sua?’. E o Mike disse: ‘Claro, vá em frente.’

Você não tem ideia de como fiquei grato quando conseguimos fechar aquele negócio. E o acordo foi: entregamos o terminal a ele e então eles tomaram a decisão de publicar nossas notícias.

E, aliás, isso foi bom para nós, porque queríamos competir com a AP, a Reuters, todo mundo. Queríamos provar que éramos mais inteligentes, mais rápidos, melhores. Que lugar melhor para fazer isso do que na seção de negócios do New York Times?

Um mês depois, 40 jornais metropolitanos queriam um acordo semelhante ao do Times. Não tinham notícias da Dow Jones, não podiam pagar pela Reuters, mas se tivessem a Bloomberg News, poderiam preencher suas páginas de negócios com um concorrente.

Então, de repente, em meados dos anos 90, éramos o serviço de notícias de negócios mais distribuído do mundo, não apenas nos Estados Unidos, mas no exterior.

Foi muito importante para nós. Estabeleceu nossa credibilidade.

Quão desafiador é reportar o Governo Trump – e o Presidente Trump, em particular?

Tenho que ter cuidado com isso, porque já faz algum tempo que não estou no comando da Bloomberg News.

Mas vou explicar o que o estilo Bloomberg faz por todos nós – e o que ele foi criado para fazer por todos nós.

Para evitar erros que são rotineiros, seguimos o princípio: show, don’t tell (mostre em vez de falar).

O que isso significa? Escreva com exemplos e anedotas.

Evite adjetivos e advérbios, que são carregados de julgamento. Escreva com substantivos e verbos.

Eu costumava distribuir para os jornalistas o livro Elements of style ainda muito famoso, escrito por um professor de inglês da Universidade de Cornell.

É a disciplina da clareza de expressão e da precisão na linguagem. Grande parte do estilo Bloomberg gira em torno disso. Trata-se de deixar os fatos serem a história – e não deixar que nada mais interfira nos fatos.

Agora, tendo dito tudo isso, cobrir pessoas que estão determinadas a serem mentirosas é um exercício muito difícil – principalmente quando são formadores de opinião.

Mas isso não é novidade, já existe há muito tempo. Jonathan Swift, em 1710, no London Examiner, escreveu que a falsidade voa e a verdade vem mancando atrás dela.

Outra lição importante é follow the money.

Tudo é um negócio. A universidade Harvard é um negócio, podemos ver isso claramente agora, não é? E toda instituição é um tipo de negócio. Se você for treinado para acompanhar o dinheiro e entender o dinheiro em todas as suas formas, que é o objetivo da Bloomberg, você será capaz de cobrir qualquer assunto.

Imagem: William E. Sauro/The New York Times.