Há sete anos, falar de Fórmula 1 nos Estados Unidos era como falar francês em Indianápolis.
O país tinha um único GP, em Austin, público restrito e direitos de transmissão praticamente gratuitos para a ESPN. Hoje o país já tem três corridas — Austin, Miami e Las Vegas — e é o único do mundo com esse status.
A F1 deixou de ser um esporte europeu com sotaque britânico para virar um espetáculo americano, onde o paddock lembra a passarela do Met Gala e o ingresso custa o mesmo que um fim de semana no Coachella. Nos camarotes, executivos do Vale do Silício dividem espaço com celebridades e investidores: a nova elite da velocidade.
A virada acelerou com Drive to Survive, da Netflix. O docu-reality transformou pilotos em personagens e construiu uma dramaturgia entre uma curva e outra — Christian Horner como vilão, Toto Wolff como estrategista, Lando Norris como garoto-propaganda da nova geração. O streaming abriu as portas da cultura pop; o resto veio rápido. Marcas, bancos, fundos de VC e empresas B2B começaram a disputar visibilidade nas pistas, e a corrida virou um ativo de status corporativo.
Hoje, colocar uma logomarca em um capacete pode custar de US$ 500 mil a US$ 2 milhões por ano, e há acordos que quebram qualquer precedente.
O mais comentado é o da Mastercard, que em agosto anunciou um patrocínio de naming rights estimado pelo mercado em US$ 100 milhões anuais com a McLaren — agora rebatizada como McLaren Mastercard Formula 1 Team. Um contrato que redefine o teto dos naming rights e confirma que a F1 virou o novo tabuleiro global do marketing.
Mensurar o retorno de um naming right é uma arte que mistura dados e percepção. As métricas existem — alcance, lembrança de marca, preferência — enquanto um grande valor costuma estar além dos gráficos: relação, prestígio e experiência, aquilo que aproxima marca e público em um território emocional. Ou, como diria a própria Mastercard, “aquilo que o dinheiro não compra”.
O bull market das transmissões
O salto de valorização também chegou às telas.
Menos de dez anos atrás, a ESPN pagava quase nada pelos direitos nos EUA, um acordo simbólico de revenue share. Em 2023, desembolsou cerca de US$ 75 milhões por temporada, depois renovou por US$ 90 milhões.
Agora, a partir de 2026, o preço sobe para US$150 milhões anuais, num pacote de cinco anos avaliado em US$ 750 milhões que fará da Apple TV o destino exclusivo da F1 nos EUA.
Para Tim Cook, o cheque não soa exagerado. É o tipo de investimento que transforma produto em conquista. A Apple investiu US$ 250 milhões na produção do filme F1, estrelado por Brad Pitt, mais US$ 125 milhões em marketing, e viu o longa arrecadar US$ 630 milhões nos cinemas – sem contar novas assinaturas e merchans embutidos no roteiro. O ROI é evidente: o filme foi o trailer perfeito para o que viria depois.
Em Cupertino, tudo parece parte da mesma corrida: fazer da Fórmula 1 o motor de um novo ecossistema onde esporte, streaming e hardware correm lado a lado no mesmo grid.

O paywall da corrida
Para quem já vive no ecossistema Apple, a experiência é fluida. Para quem está fora, mais cara. A assinatura do Apple TV+ com a F1 custa US$ 12,99 mensais, com acesso a treinos, classificações, Sprints e corridas.
Algumas etapas serão gratuitas no app — um freemium disfarçado de gentileza. Mas o acesso completo, inclusive ao F1 TV Premium, agora passa a exigir a Apple TV como porta de entrada.
É o modelo clássico da Apple: transformar o aberto em assinatura, e é a mudança mais profunda no consumo da F1 nos EUA desde 2018. A empresa apenas repete o que já fez no futebol. Em 2023, fechou um acordo de US$ 2,5 bilhões por dez anos com a MLS, que inclui clubes como Orlando City, LA Galaxy e, claro, o Messi jogando.
Os defensores do modelo lembram que nenhuma empresa combina tecnologia, produto e distribuição com a precisão da Apple. O pacote da F1 será integrado a Apple News, Apple Maps, Apple Music, Apple Fitness+ e Apple Sports, com placares ao vivo, standings, Live Activities e widgets interativos. A transmissão terá versões em inglês e espanhol, mirando os mais de 40 milhões de hispânicos que vivem nos EUA. O conteúdo será exibido com compressão mínima, som cinematográfico e câmeras sob demanda.
No business plan, tudo parece premium; na prática, é um pedágio digital.
A MLS como laboratório
O futebol serviu de ensaio. Em 2025, a MLS divulgou seus primeiros números públicos: audiência 29% maior que no ano anterior, 3,7 milhões de espectadores agregados por semana e 120 mil espectadores únicos por jogo — um salto de 50% sobre o ciclo anterior. Ainda assim, sem o paywall o alcance e a receita de publicidade seriam maiores?
A comparação inevitável é com a NBA, que voltou à TV aberta pela NBC, manteve acordos paralelos com a Amazon e outras plataformas e reconectou as massas sem abrir mão das assinaturas. É o oposto da lógica de jardim murado da Apple.
A transparência é outro ponto sensível. A Apple divulgou as métricas de audiência da MLS a conta-gotas. Se repetir o padrão na F1, a categoria ganha previsibilidade de receita, mas pode colocar em jogo o termômetro público de audiência e frequência — algo que a TV aberta, com Nielsen e auditorias, sempre forneceu e que as marcas ainda exigem para justificar o investimento.
Pragmatismo de quem paga mais
No tabuleiro estratégico, tudo faz sentido. A Apple reforça a Apple TV com um calendário premium, monetiza via assinaturas e bundles, amplia o tempo de permanência dos usuários e ancora a narrativa no sucesso do seu filme hollywoodiano sobre corridas.
Para a Liberty Media, a dona da F1, é o negócio ideal: menos risco, mais receita e um parceiro com distribuição integrada e poder de marketing. Afinal, quem não quer fazer um deal com a Apple?
O risco é reduzir o alcance casual que a TV aberta oferecia, especialmente nas manhãs de domingo. Para compensar, Apple e F1 prometem liberar algumas sessões gratuitas no app, fazer diversas ativações físicas nas Apple Stores e experiências de marca no estilo pit stop premium.
A Apple joga o jogo que domina: controle total do circuito — da transmissão ao consumo, do software ao hardware e agora ao conteúdo. É a filosofia do longo prazo: o usuário como cliente, espectador e produto. Algo que poucas Big Techs conseguem com maestria.
Para a Fórmula 1, o acordo é o próximo capítulo da sua americanização, agora medido não em pontos do ibope, mas em assinaturas. E para o mercado, é o lembrete definitivo de que a corrida não é mais pela audiência, é pela posse da tela.
Kaio Philipe é o CMO da Inter&Co.






