Em 1996, quando a globalização parecia inexorável e inquestionável, Michael Sandel publicou O Descontentamento da Democracia.

Analisando a história da formação política e econômica dos EUA, o professor de filosofia política da Harvard Law School chamava atenção para o perigo subjacente de que a “financeirização” da economia poderia corroer o tecido social da sociedade americana. Sandel via o risco de uma reação dos excluídos.

Presciente em diversos aspectos, o livro não foi lançado no Brasil na época, mas agora uma nova e atualizada versão de O Descontentamento da Democracia (448 págs.) está em pré-venda pelo selo Civilização Brasileira, da Record.

Sandel atualiza a história para refletir sobre a desregulamentação dos mercados nos anos Clinton, os efeitos da crise financeira de 2008 e os movimentos populistas que vieram depois, chegando aos anos Trump.

“Num momento em que os ideais democráticos vacilam no exterior, existe razão para se questionar se os perdemos em casa,” escreve Sandel. “A vida pública está repleta de descontentamento. Os americanos não acreditam ter muita influência na forma como são governados e não confiam que o governo vá fazer a coisa certa.”

“Enquanto isso,” diz Sandel,“ os partidos políticos são incapazes de interpretar nossa condição.”

Para ele, duas grandes preocupações residem no centro do descontentamento da democracia: o “medo de que estejamos perdendo o controle das forças que governam as nossas vidas” e “a sensação de que o tecido moral da comunidade se desfaz diante de nossos olhos.”

“Esses dois medos — da perda do autogoverno e da erosão da comunidade — definem juntos a angústia da nossa era,” escreve o filósofo.

Dono de algumas das aulas mais disputadas de Harvard, Sandel escreveu best-sellers como Justiça – O que é fazer a coisa certaO Que o Dinheiro Não Compra e, mais recentemente, A Tirania do Mérito. No mês que vem, o professor estará no Brasil, para apresentações nos ciclos de palestras da série Fronteiras do Pensamento.

Michael SandelA seguir, um trecho do epílogo da nova edição de O Descontentamento com a Democracia, em que Sandel analisa o que “deu errado” no capitalismo e na democracia a partir dos anos 1990.

O caráter político da globalização foi obscurecido por sua descrição como um fato inalterável da natureza.

Em 2016, muitos eleitores americanos sentiam com razão que a versão da globalização adotada pelos Partidos Democrata e Republicano nas décadas de 1990 e 2000 era menos inevitável do que alegavam seus defensores.
 
Dependia de escolhas políticas contestáveis que expunham à competição global certas atividades econômicas, mas não outras. Essas políticas criaram vencedores e perdedores. Não surpreende que os vencedores tendessem a ser aqueles com poder e acesso para dobrar as regras da integração global a seu favor. 

A maior parte do debate político sobre acordos de livre comércio se relacionava com padrões trabalhistas e ambientais: as empresas deveriam poder burlar as regulamentações de proteção dos trabalhadores americanos ao estabelecerem a migração dos empregos para países de baixos salários com poucos direitos de negociação coletiva, além de frouxas regulamentações ambientais e de segurança?

A doutrina econômica da vantagem comparativa ensina que o livre comércio traz ganhos mútuos ao permitir que cada parceiro comercial se especialize no que faz de melhor. Mas e se a “vantagem comparativa” que um país tem a oferecer for sua disposição a permitir que seus trabalhadores atuem em condições perigosas ou que sejam explorados? Esta não é uma questão que possa ser resolvida por especialistas econômicos. É uma questão moral e política que os cidadãos democráticos devem debater e resolver.