“A arte está morta, mas eu estou vivo!” gritou Raymundo Colares antes de jogar uma pedra no vidro da entrada do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, dias antes da abertura do Salão de Arte Moderna.

O crítico de arte Mário Oliveira relatou esta performance e escreveu certa vez que “o mais curioso desse fato é que ele também seria o grande vencedor desse Salão de Arte Moderna, não pela ação/happening, mas sim pelo quadro Pintura preta e vermelha, que recebeu o prêmio máximo de viagem internacional,” escreveu Oliveira em artigo sobre o artista.

Colares criou uma linguagem própria, uma fusão entre o neoconcretismo e o pop art. Sua obra foi produzida entre o final da década de 1960 e o começo dos anos 1980, período em que criou pinturas, livros/objetos (os famosos gibis) e algumas experiências com filmes.

Ganhou diversos prêmios e bolsas para estudar no exterior, vivendo nos anos 70 em Nova Iorque e Milão.

O ônibus foi uma imagem recorrente em sua produção: um símbolo da vida urbana, veloz e fragmentada. Usando cores fortes e cortes abruptos nos desenhos geométricos, o artista capturava o fluxo acelerado da cidade grande.

“Reconheço, sim, a influência do cinema nos meus quadros. A influência dos cortes, da dinâmica. E, nesse caso, reconheço também a influência do cinema americano, que era o que existia para se ver em toda a minha infância e adolescência. E também a influência das histórias em quadrinhos, invenção americana e leitura dos meus tempos de criança,” disse em uma entrevista ao Correio da Manhã. “Mas os ônibus que retrato, garanto, são inteiramente cariocas e urbanos.”

Colares morreu jovem, aos 42 anos, depois de uma série de eventos trágicos. Curiosamente, o ônibus tão presente em sua obra e imaginário o atropelou literalmente numa rua do Rio de Janeiro.

Mais do que as fraturas, o acidente expôs sua crescente fragilidade psicológica, levando a uma internação numa instituição psiquiátrica em Montes Claros, onde Colares viria a morrer em decorrência de um incêndio em seu quarto, um incidente nunca esclarecido. 

 Mineiro, nascido em 1944, Colares passou a adolescência em Salvador até se mudar para o Rio, onde viveu a efervescência artística da época com Roberto Magalhães, Antonio Dias, Arthur Barrio, Antonio Manuel, Lygia Pape, Ascânio MMM e Hélio Oiticica.

Na época, o point do grupo era o bar do MAM Rio. Oiticica, um amigo próximo, dizia que Colares tinha sensibilidade à flor da pele e era um moderno fora de moda. 

Sua carreira foi breve, mas teve um impacto relevante nos artistas de sua geração e nos rumos da arte brasileira, ainda que seja o menos conhecido da sua geração. 

Agora, depois de 15 anos sem uma individual em São Paulo, vem Colares: Pista livre, uma exposição panorâmica do artista que acaba de abrir na galeria Almeida & Dale, em São Paulo, sob curadoria de Ligia Canongia.

“Do jovem provinciano de Montes Claros ao sonhador que se projetava em James Dean, do intelectual interessado em Mondrian, Pollock e Warhol ao flâneur solitário que perambulava da Zona Sul à Av. Brasil, Raymundo Colares construiu uma obra parecida consigo mesmo: a mistura da alta precisão com a ansiedade da urgência, o embate do latino com o super-american hero, o limite entre o rigor e o desejo.” Canongia disse ao Brazil Journal.

Mondrian foi uma influência importante. Algumas obras têm homenagens explícitas, como uma colagem de 1972, feita em Milão, chamada Eu ainda entendo Mondrian.

Canongia acredita que havia uma diferença fundamental entre os dois artistas: enquanto Mondrian queria atingir a essência por meio de uma demonstração quase científica da clareza da pintura, Colares, ao contrário, estava mais próximo das disjunções cubistas, da ambiguidade e contradições. 

“Colares é intelecto e emoção, clareza e caos. Ele consegue fazer conviver domínios excludentes, confluir opostos. Enquanto Mondrian buscava a certeza, ele optava pela ambivalência.”

Com mais de 40 obras, incluindo pinturas e os emblemáticos gibis (duas obras originais estão disponíveis para interação), a mostra inclui também um vídeo do carioca Marcos Chaves em homenagem a Colares, usando imagens em movimento, o universo visual dos ônibus que tanto o inspiraram. 

Em setembro, a galeria lança o primeiro livro integral sobre a obra de Colares, com artigos históricos e documentos inéditos, como cartas e poemas visuais do próprio artista.

No texto da exposição, a curadora diz: “Colares compreendeu que a questão do movimento, em última instância, a questão do tempo, havia arremetido a experiência da pintura para além da estabilidade que conhecera no passado histórico, respondendo aos avanços da ciência e ao viver moderno. Pressentiu que essa atualização se prolongaria na era contemporânea, e que os efeitos da máquina seriam intensos e irreversíveis, mesmo não tendo vivenciado o mundo digital de nossos dias.”