Enfrentando uma crise de escassez de dólares sem precedentes, o Governo da Bolívia está estruturando uma emissão de bonds com dois bancos internacionais, mas fatores políticos podem impedir a transação, fontes a par do assunto disseram ao Brazil Journal.
O Governo do Presidente Luis Arce quer captar cerca de US$ 1,5 bilhão dando como garantia parte das reservas de ouro do país, que hoje somam 22,5 toneladas, ou cerca de US$ 2 bilhões.
A captação tem um timing sensível: as eleições da Bolívia acontecem em 17 de agosto, e o país tem vencimentos de sua dívida externa que precisam ser quitados nos próximos meses.
A dívida externa da Bolívia soma US$ 12,3 bilhões (a maior parte em empréstimos multilaterais) e o serviço da dívida será de US$ 1,6 bilhão só este ano.
Como financial advisors, o Ministério da Fazenda da Bolívia contratou a RPC, a boutique brasileira focada em resolução de problemas complexos do ex-Rothschild Gustavo Tachibana, além do Cleary Gottlieb, o escritório americano especializado em assessorar governos.
Nos últimos meses, os assessores fizeram um processo competitivo com diversos bancos globais e lançaram um um RFP (request for proposals). Os vencedores foram o Bank of America e o Deutsche Bank, que vão estruturar a emissão.
A emissão está pronta para sair do papel, mas vem enfrentando uma forte resistência no Congresso boliviano.
Deputados e senadores do próprio MAS, o partido do Presidente Arce, têm questionado o amparo legal da operação – uma disputa que mistura divergências internas, cálculo eleitoral e a influência de Evo Morales.
Para fazer a operação, o governo incluiu na Lei Orçamentária, aprovada no início do ano, dispositivos que permitem a emissão do bond e o uso das reservas do Banco Central como garantia para captações.
A oposição está tentando revogar estes dispositivos, e chegou a entrar com uma ação no Tribunal Constitucional argumentando que a Constituição exige que o país tenha pelo menos 22 toneladas de ouro em reserva — e que, portanto, o uso dessas reservas como garantia de um empréstimo seria inconstitucional. (O contra-argumento do Governo é que as reservas não sofreriam alteração de titularidade ao serem dadas como garantia).
A emissão do bond é uma das últimas cartadas de um Governo que vem sofrendo dificuldade para aprovar qualquer coisa que dependa do Congresso, e vem num momento em que a economia boliviana está se deteriorando.
Com um PIB de US$ 45 bilhões e um déficit primário de 5% no ano passado, a Bolívia tem uma forte dependência das exportações e não é autossuficiente em combustíveis, precisando de um inflow constante de dólares para conseguir importar gasolina e diesel e servir sua dívida externa.
Há anos, o país vem resolvendo essa equação exportando gás para a Petrobras e usando esses recursos para cobrir suas obrigações em dólar.
“O problema é que as reservas de gás da Bolívia tem diminuído, e Vaca Muerta [a gigantesca reserva de gás de xisto da Argentina] tem tirado parte da demanda deles,” disse um executivo que faz negócios no país. “Como a exportação de gás da Bolívia caiu muito e ela é praticamente a única fonte de entrada de dólar, eles estão tendo dificuldades para importar combustível pela YPFB [a petroleira estatal].”
Até pouco tempo, toda a importação de combustível da Bolívia era feita pela YPFB. Recentemente, no entanto, o governo teve que liberar a importação por players privados porque não estava dando conta de importar o necessário.
O problema: a YPFB vendia esse combustível subsidiado para o consumidor, o que fazia o preço ser metade do cobrado no Brasil e 35% menor que o dos Estados Unidos.
A importação por players privados gerou um aumento do preço na bomba, algo que nenhum Governo quer às vésperas de uma eleição.
Antes de estruturar a emissão do bond, o Governo avaliou diversos outros caminhos para levantar recursos em dólar.
A Bolívia tem uma reserva gigantesca de lítio e chegou a fechar contratos com empresas da Austrália, China e Rússia para a exploração dessa reserva. Mas como qualquer investimento externo tem que passar pelo Congresso, os investimentos estão paralisados.
Outra saída aventada foi uma operação de antecipação dos recebíveis que a YPFB tem com a Petrobras. A transação estava prestes a ser assinada quando houve uma tentativa de golpe no país, no dia 26 de junho passado.
O General Juan José Zuñiga levou tanques até a Plaza Murillo, tomando o controle da praça e do Palácio Quemado. O golpe foi contido pelo Governo, mas a antecipação dos recebíveis morreu na ponta da baioneta.
O Governo também tem mais de US$ 1,5 bilhão em linhas de crédito já aprovadas por organismos multilaterais. O problema é que o Congresso também vem bloqueando o uso desses recursos.
O cerne de toda a tensão política da Bolívia é Evo Morales, que foi presidente de 2006 até 2019, quando renunciou por conta de protestos crescentes da população e de suspeitas de fraude nas eleições.
Depois de deixar o poder, Morales foi considerado inelegível pelo Tribunal Constitucional do país, e tem ainda um mandado de prisão por acusações de tráfico humano e relações com menores de idade.
Até pouco tempo, Morales era do mesmo partido do presidente Arce — o Movimento ao Socialismo (MAS). Mas em fevereiro, o ex-presidente anunciou sua saída do partido depois de 25 anos para tentar voltar ao poder pelo Frente para a Vitória (FPV).
Mesmo antes de deixar o partido, Morales já havia se tornado o principal opositor do atual governo, criticando diversas decisões de Arce. Num congresso no final de 2023, por exemplo, chamou os apoiadores do atual presidente de “traidores.”
Recentemente, o presidente Arce declarou que não será candidato à reeleição e vai apoiar a candidatura do atual presidente do Senado, Andrónico Rodriguez, em prol de uma frente única de esquerda.
Já a oposição de direita está fragmentada em quatro nomes, tornando a eleição de agosto ainda mais imprevisível.