Numa reunião com o mercado que ainda deixou diversas dúvidas no ar, Sergio Rial tentou explicar como a Americanas se viu às voltas com um rombo de cerca de R$ 20 bilhões no balanço.
As explicações deram início a um dia tenebroso na Faria Lima, com investidores internacionais e locais em choque, bancos medindo o impacto da revelação em suas carteiras, e o drama da Americanas contaminando o resto do varejo.
Dizendo várias vezes que faria o relato “possível” depois de apenas 9 dias como CEO da companhia, Rial disse que começou na Americanas tentando entender quais eram os motores da geração de caixa da empresa. Rapidamente, ele e o CFO André Covre identificaram inconsistências na contabilização de alguns itens que representavam “distorções importantes”.
Enquanto Rial ainda falava, o leilão de abertura da Americanas começou na B3 com a ação caindo 50% – uma queda que rapidamente aumentou para 70% e depois para 90%. Quando a ação começou a negociar, por volta das 14:40, a queda estava em torno de 80%.
Segundo Rial, para financiar seu crescimento – em especial na operação digital – a Americanas antecipava pagamentos para fornecedores contratando dívida com os bancos – uma operação comum no mercado, conhecida como ‘risco sacado’.
Nesse tipo de transação, o banco compra com deságio a dívida da empresa com o fornecedor. Depois de um prazo estipulado, a companhia tem que pagar o banco.
Essas transações são de natureza bancária, já que a Americanas tem que pagar ao banco, e não ao fornecedor, mas, segundo Rial, a Americanas não as contabilizava como dívida bancária, e sim na conta de fornecedores.
As despesas financeiras dessas dívidas também não eram contabilizadas como despesas financeiras no P&L, e sim reduzidas da conta de fornecedores, o que acabava inflando artificialmente o lucro.
Segundo Rial, todas as despesas financeiras foram pagas pela empresa, por isso não há impacto caixa.
Essa prática vinha sendo adotada pela empresa há anos. “Não sei se são 7, 8, 10 anos. Mas certamente não são 2 e 3,” disse Rial.
As regras contábeis brasileiras não impedem que a empresa faça a contabilização dessa forma, apesar de existir uma orientação da CVM para que operações dessa natureza sejam contabilizadas como dívida.
Rial estima que o impacto no resultado dessa contabilização ao longo do tempo seja de R$ 20 bilhões — mas esse número ainda precisa ser confirmado pela auditoria externa.
Ao republicar os balanços e lançar as operações de ‘crédito sacado’ como dívidas, a estrutura de capital da Americanas será afetada, com uma redução do patrimônio líquido e um aumento brutal da alavancagem – que nas contas da XP iria de 1,7x para 8x o EBITDA. Rial disse na call que a empresa precisará de uma capitalização e que ela não será de “milhões, mas de bilhões.”
Até ontem, o mercado estimava que a Americanas faria R$ 3 bi de EBITDA este ano, carregando uma dívida líquida de R$ 15 bilhões. No call de hoje, Rial disse que o EBITDA da empresa deve ficar em R$ 1,5 bi e o mercado estima que a dívida possa ser o dobro.
Questionado se os acionistas de referência — Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sicupira e Marcel Telles — continuam comprometidos “financeiramente” com a operação, já que nenhum acionista minoritário vai topar colocar mais dinheiro na empresa, Rial disse que eles devem apoiar o negócio. “Eles têm compromisso em fazer parte da solução desde que a capitalização leve a resultados mais consistentes,” disse.
“O que houve foi um total descontrole”, disse um analista. “Quando você coloca tudo numa conta só, sem separar o que é fornecedor e o que é o financiamento dessa conta… nem os bancos tinham a visão do tamanho do risco sacado, por isso continuaram dando dinheiro para a companhia. Nenhum deles teria dado tanto dinheiro se soubessem desses R$ 20 bi.”
Para um gestor, os bancos “não faziam o dever de casa, mas davam crédito infinito porque até bem pouco tempo atrás a empresa era controlada pelos três homens mais ricos do País.”
Rial disse que a Americanas tem caixa e não terá dificuldades no curto prazo, a menos que os bancos resolvam acelerar a dívida ou cortar o crédito – a geração de caixa hoje não é suficiente para pagar os juros da dívida. Mais de 90% da dívida da Americanas não tem covenants, segundo ele.
A forma como a comunicação do problema foi conduzida – do Fato Relevante de ontem à teleconferência de hoje – enfureceu participantes do mercado.
Rial falou com investidores numa reunião no BTG Pactual, transmitida por Zoom mas restrita a apenas 1.000 participantes. Em dado momento, havia mais de 3,5 mil pessoas na espera do Zoom tentando acessar a call, em vão.
A Americanas tem mais de 146 mil acionistas pessoas físicas.
A conferência também começou a ser transmitida pelo Youtube, mas o sinal foi cortado depois de 17 minutos.
“O Rial sai de uma empresa e começa a dar informações materiais não-públicas por aí como bem entende?” questionou um gestor.
Como a divulgação do problema foi feita ainda sem os números confirmados, muitos gestores dizem que Rial e Covre pensaram primeiro em se proteger de liability, e não nos impactos imediatos do anúncio.
Um advogado societário concorda: “O FR foi o pior que eu já vi na minha vida. Nove dias não são suficientes para entender nada. Ou ele já sabia, ou sabia e não entendeu, ou não entendeu até agora e foi precipitado e irresponsável de vir a público como veio.”
Rial disse que a decisão de divulgar as informações agora foi uma “escolha de Sofia”, em prol da transparência.
Para muitos gestores, o EBITDA da Americanas nunca conversou com seu fluxo de caixa. “Essa inconsistência é antiga, já foi muito questionada e rebatida com arrogância pelo management anterior,” disse uma fonte. “O Rial deve ter falado com meia dúzia de analistas e foi direto na conta que sempre foi questionada.”
“Talvez isso explique as seguidas necessidades de aumento de capital da empresa ao longo dos anos,” disse outro gestor. “Essa situação toda deve ter sido agravada pela alta dos juros,” que dificultou a pedalada e expôs o problema.
Um analista disse que há dúvida se as demais empresas de varejo adotam a mesma prática – o que está pressionando todo o setor hoje na Bolsa.
“Elas têm que vir a público explicar como contabilizam o crédito sacado,” disse o analista. Para ele, até que fique claro qual é esse risco no mercado, as ações de bancos e varejo vão continuar caindo.
“Isso só está acontecendo na Americanas porque contrataram um banqueiro como CEO,” disse um gestor.
Depois da call com o mercado, Rial gravou um vídeo de 11 minutos – disponível no site de RI da Americanas – no qual forneceu alguns números, incluindo “uma dívida bruta de entre R$ 30 a R$ 35 bilhões.”
Mais uma vez, gestores ficaram confusos. No balanço do terceiro trimestre, a empresa reportou empréstimos e financiamentos de R$ 16,5 bilhões, debêntures de R$ 4,3 bilhões e – somando mais R$ 5 bi de fornecedores – totaliza uma dívida de R$ 25,8 bilhões.
“Falta de R$ 5 bi a R$ 10 bi para dar o número de dívida que ele falou,” disse.
Rial começou o call falando que a estruturação de risco sacado era um problema no mercado brasileiro como um todo, e citou a varejista Centro como tendo sido vitimada pela mesma questão na década de 90.
Ele pediu aos investidores que prestassem atenção ao que ele estava dizendo, e não “a como estavam se sentindo.”
Rial disse também que não viu uma cultura tóxica na empresa, “mas que faltava transparência e controles.”
“O nível de transparência e a vontade da própria gestão de querer falar de problemas e de desafios não era tão fluido na organização como deveria”, disse.
Rial disse que a Americanas deve “conseguir operar com um nível de capex e capital de giro menor do que o atual.” Segundo ele, essa redução pode ser de entre 50% a 60%, o que geraria uma economia de cerca de R$ 2 bi para a companhia.