No ano do seu centenário, talvez a melhor frase para resumir o legado de Roberto Campos seja aquela do escritor francês André Malraux, para quem “o mundo um dia começou a ficar parecido com meus livros.” Nas diversas batalhas em que se envolveu, Campos colecionou inúmeras derrotas aparentes, diligentemente transformadas em vitórias de fato pela mais cabal das autoridades: o tempo.

Como economista, Campos participou ativamente de dois dos mais importantes planos econômicos que levaram a uma restruturação da economia brasileira: o Plano de Metas do Governo JK e o Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG), na gestão Castello Branco. 

No primeiro, Campos defendeu austeridade monetária e fiscal para debelar a inflação. Infelizmente, o debate foi vencido pelos estruturalistas, que propunham investimentos em ‘setores estratégicos’ e maldosamente o apelidaram de ‘Bob Fields’ — um jeito ameno de imputar-lhe a pecha de ‘vendilhão da pátria’. 
 
Resultado: a inflação mudou de patamar, de 7,2% em 1957 para 140% no primeiro trimestre de 1964.

No debate sobre o papel do BNDES, Campos — presidente do banco em 1958/59 — restabeleceu a obrigatoriedade de concurso público para a admissão de funcionários, buscou a independência financeira frente ao Tesouro com ‘funding’ próprio a partir de emissão de dívida em mercado, e adotou como diretriz não emprestar a projetos capazes de se financiar no mercado privado.

Mas as boas práticas ficaram pelo caminho e, no governo do PT, o ‘crescimento ímpar de musculatura para a promoção do desenvolvimento no período 2007-2014’, segundo relatório de 2015 do próprio BNDES, resultou novamente em desastre. 
 
O banco ficou viciado no caixa do Tesouro, o que contribuiu para elevar o endividamento público em meio trilhão de reais. O financiamento de grandes empresas — mais antigas e menos arriscadas, justamente aquelas com maior acesso aos mercados — voltou a dominar a agenda do banco, redistribuindo renda da sociedade para os acionistas das grandes empresas. Estes se limitaram a gozar de um custo financeiro mais baixo, sem impacto algum sobre investimentos e produtividade.  (Mas é Bob Fields quem leva a fama de ser pró-burguesia.)

Hoje, num contexto moderno, a nova gestão do BNDES procura aproximar sua operação do que fora idealizado por Roberto Campos.

Campos também deixou sua marca em nossa política monetária, mas, como sempre, ela durou pouco.  Como formulador do PAEG, criou o Banco Central do Brasil com diretoria com mandato fixo. A autonomia do BC foi atropelada por Costa e Silva — com a célebre frase “o guardião da moeda sou eu” —  e eliminada da lei no Governo Geisel. Hoje, nosso BC é o único entre os bancos centrais dos países que empregam o regime de metas de inflação a não dispor de autonomia operacional, ficando sistematicamente exposto à interferência política.

Campos dizia que o Brasil possui ‘o fetiche do produto físico’. Nos anos 20 era o minério de ferro, nos anos 40 o aço produzido pela CSN, nos anos 50 o petróleo com a criação da Petrobras… de forma que nossa economia sempre viveu em eras neolíticas ou mesmo paleolíticas.

Nós brasileiros adoramos monopólios estatais, regulações intervencionistas como a reserva de mercado da informática e, mais recentemente, as cláusulas de conteúdo local na indústria do petróleo. Uber não regulado?  Jamais!

Outra importante batalha travada por Campos foi pela privatização da Petrobras, a qual apelidou de ‘Petrossauro’ por sua sistemática ineficiência. Ninguém teve tanta coragem de defender publicamente a privatização da maior vaca sagrada brasileira — mesmo depois da vaca ter ido ao brejo.

Campos procurava mostrar como a criação da Petrobras representou um absurdo, uma agressão à racionalidade econômica. Segundo ele, quando a história econômica do Brasil se assentar, “campanhas econômico-ideológicas, como a do ‘petróleo é nosso’, deixarão de ser descritas como uma marcha de patriotas esclarecidos e passarão a ser vistas como uma mera procissão de fetichistas anti-higiênicos, capazes de transformar um líquido fedorento num unguento sagrado.”

A criação do monopólio estatal em 1953 foi, segundo ele, um pecado contra a lógica econômica. Criou-se uma cultura de reserva de mercado, hostil ao capitalismo competitivo, fomentando uma burguesia estatal protegida da crítica e imune à concorrência. Criou-se uma falsa identificação entre o interesse da empresa e o interesse nacional, de sorte que toda crítica à gestão da empresa e a busca de alternativas passaram a ser vistas como traição ou falta de patriotismo.

Para Campos, o monopólio da Petrobras é uma aberração lógica por fazer do Brasil o único país importador que prefere comprar petróleo do estrangeiro a receber capitais para produzi-lo internamente. Dentro desse raciocínio, afirmava que a privatização não é uma opção acidental nem coisa postergável, como pensam políticos irrealistas e burocratas corporativistas. Pensando na Petrobras, Campos cunhou a frase que, como tantas, continua atual: “a diferença entre a empresa privada e a pública é que aquela é controlada pelo governo e esta, por ninguém.”

Quando  em 1997 o governo FHC promoveu a abertura do mercado de petróleo no Brasil, Campos desafiou o consenso e vaticinou que a lei, a longo prazo, acabaria aumentando o poder de monopólio da Petrobras. “O Fernando Henrique jamais pode ser chamado de neoliberal,” declarou o economista, então com 80 anos. “Um neoliberal jamais apresentaria um Projeto de Lei vedando a privatização da Petrobras”.

A história provou que a cabeça de Roberto Campos estava à frente de seu tempo — e que o Brasil, desgraçadamente, parou nele.
 
Adriano Pires e Roberto Castello Branco, economistas, trabalharam com Roberto Campos.