A agilidade do olhar e a leveza da abordagem eram inversamente proporcionais à figura rotunda e pesada de Ricardo Chaves, fotógrafo gaúcho que morreu no último dia 4 na sua Porto Alegre natal.

A morte de Kadão, como o fotógrafo ficou conhecido por todos que conviveram com ele em mais de cinco décadas de atividade, engrossa uma lista que vem sendo cruel com grandes profissionais da imagem: só nos últimos oito meses, o Brasil perdeu primeiro o paulista Juan Esteves (em setembro de 2024) e, logo depois, o baiano-carioca Evandro Teixeira (em novembro do mesmo ano). Kadão é a terceira baixa nessa triste contagem.

Aos 73 anos, Kadão estava aposentado, mas não parado. Continuava atento ao noticiário e a tudo o que acontecia ao seu redor, de Donald Trump até as curiosas conversas de bar que ele tanto adorava – sempre acompanhadas de coca-colas e muitos pasteis.

A única coisa que o preocupava era a saúde, que ultimamente o havia feito perder mais de 40 dos 140 quilos e o forçava a constantes visitas ao hospital para tratamentos e internações. Na última entrada, não resistiu. 

Morreu vítima de um câncer na bexiga que o assombrava há sete meses, sem que perdesse o bom humor. Deixou a mulher, Loraine, sua companheira por mais de 50 anos, dois filhos e dois netos. Deixou ainda centenas de amigos que se divertiam com suas histórias e milhares de leitores que admiravam a qualidade de seu trabalho, não apenas fotográfico como também escrito, como comprovou no tempo em que esteve à frente da seção Almanaque Gaúcho, na Zero Hora.

Era um profissional múltiplo, com capacidade para transitar em todos os assuntos que circulam em uma redação. Foi da política ao esporte (cobrindo Copas e Olimpíadas), da cultura às viagens (incluindo a paisagens distantes como o Japão e a Sibéria), e fotografou todo mundo que foi relevante no Brasil nos últimos 50 anos, um rol interminável de famosos que vai de Danuza Leão a Fernando Collor, passando por nomes como Ana Cristina César, Chico Buarque (em um momento de total descontração), Sônia Braga, Chacrinha, Paulo Coelho e Ayrton Senna.

Clicou também momentos históricos marcantes como a campanha pelas Diretas, a bomba no Riocentro, as manifestações dos caras-pintadas que exigiam o impeachment de Collor e o retorno dos exilados políticos ao Brasil.

Nesse último assunto, Kadão carregava uma relação que transcendia o profissionalismo jornalístico. Trabalhando para a revista Veja, ele estava entre as milhares de pessoas que se aglomeravam pelas ruas de São Borja para saudar o retorno do mais aguardado dos exilados, Leonel Brizola, em 1979. O mesmo Brizola que havia sido chefe de seu pai, o jornalista e boêmio Hamilton Chaves, durante a Campanha da Legalidade, e que o inspirara a colocar o mesmo nome em seu filho.

De Brizola, Kadão trazia ainda a memória da visita que fez ao ex-governador em seu exílio uruguaio, flagrando o político em 1974, uma década depois do golpe, realizando atividades prosaicas como a de dirigir a própria caminhonete.

Autodidata, Kadão chegou à fotografia quase por acaso. Aluno de uma escola técnica, descobriu a atividade no último ano do curso profissionalizante e se encantou com todas as etapas que fazem parte de um trabalho em estúdio. Começou como laboratorista e trabalhou no início de carreira na mesma Zero Hora onde no início dos anos 90 voltaria para viver suas últimas três décadas profissionais.

Nesse meio tempo, circulou por três estados (Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e São Paulo) e pelo Distrito Federal, levando sua curiosidade e o brilho de seu trabalho para as redações do Jornal do Brasil, de O Estado de S. Paulo e das revistas IstoÉ e Veja.

Na revista da Editora Abril, Kadão teve ainda um papel mais fundamental, em especial numa reportagem que teve repercussão internacional: o desvendamento do sequestro do casal Universindo Diaz, Lilian Celiberti e seus dois filhos, em novembro de 1978.

“Foi o melhor repórter que tive ao meu lado em quatro décadas de aventuras no mundo trepidante do jornalismo,” recordou o jornalista Luiz Cláudio Cunha, autor dos textos da reportagem. “Para minha sorte, Kadão estava ao meu lado. O voo criminoso da Operação Condor em Porto Alegre foi denunciado pela imprensa, a ação clandestina foi abortada e os sequestrados sobreviveram, escapando do assassinato de rotina da repressão uruguaia.”

Na mesma Veja, Kadão esteve à frente da editoria de fotografia da sucursal do Rio de Janeiro. O também fotógrafo Rogério Reis, colega de redação, recorda esse tempo. “No início dos anos 80, nos tornamos amigos para sempre,” lembra Rogério. “Além de brilhante fotógrafo, Kadão era dotado de humor fino, rara generosidade e inteligência de sobra. Além dos bons churrascos que ele produziu na casa da minha mãe, dividimos a cobertura do período das Diretas Já e estávamos juntos no comício da Candelária.”

Agora, como se cumprisse um ciclo – interrompido, mas não inacabado – Kadão permanecerá por aí. Um dia após sua morte, a filha Letânia publicou um texto contando que por desejo expresso dele suas córneas haviam sido doadas.

“Assim como meu pai, não tenho religião, não sei se ele está em algum lugar. Mas o seu olhar estará,” escreveu ela. “E não consigo imaginar melhor maneira de um fotógrafo como ele se despedir.”

O olhar – atento e aguçado – continua por aí.