Cresce a constatação de que a segurança pública é uma das áreas mais críticas da vida nacional. Há pouco pudemos testemunhar, com a Operação Carbono Oculto – que desmantelou um esquema bilionário de adulteração de combustíveis e lavagem de dinheiro no mercado financeiro – o quão espraiada no cotidiano brasileiro é a sombria atuação de facções do crime organizado.
A recente execução do ex-delegado-geral de São Paulo Ruy Ferraz Fontes, por seu turno, mostra a ousadia perversa da criminalidade, que saiu do controle no País.
Não chegamos por acaso a esse ponto calamitoso. Esse cenário trágico foi construído dia a dia nas últimas décadas, com ações que vão desde o desprezo a políticas públicas prioritárias até o jogo de empurra entre os entes federados no tabuleiro de responsabilidades.
No poço sem fundo das inconsequências, encontra-se especialmente o sistema prisional, um fator crucial nessa problemática. Isso porque uma política efetiva de enfrentamento da criminalidade, especialmente aquela estruturada como organização, não pode passar ao largo da reforma das práticas de encarceramento.
Abandonadas pelo descaso, como infelizmente temos visto, as cadeias se tornam escritórios ou filiais do crime organizado, às custas do Estado. Uma tragédia também patrocinada pelas condições indignas que, em vez de ensejar a ressocialização, fazem proliferar e energizam os tentáculos da bandidagem.
Ou seja, como bem apontou o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, em recente artigo na imprensa, “trata-se de um gesto político: assumir que não há saída para a crise da segurança sem enfrentar o caos prisional”. Dessa ideia, comungamos há muito. Ela foi mesmo uma linha condutora de minha ação à frente do governo do Espírito Santo (2003-2010/2015-2018).
Em 2003, quando assumi o Executivo capixaba, encontrei um cenário que envergonhava qualquer sociedade que se pretenda civilizada. As unidades prisionais estavam depredadas, superlotadas, sem gestão e com servidores despreparados. Delegacias funcionavam como presídios improvisados. Rebeliões eram frequentes, as polícias eram desviadas de suas funções para vigiar presos, e o Estado era apontado nacionalmente como exemplo de degradação.
Diante daquele quadro, sabíamos que não haveria saída simplista. O descaso acumulado por mais de três décadas exigia planejamento e investimentos pesados. Optamos por encarar o problema de frente: entre 2003 e 2010, destinamos mais de R$ 420 milhões, todos de recursos próprios, à reconstrução do sistema prisional. Foram erguidas 26 novas unidades, que criaram quase 10 mil vagas. Àquela altura, o Espírito Santo tornou-se o Estado brasileiro que, proporcionalmente à sua população, mais investia no setor.
Mas não nos limitamos a construir paredes. Compreendemos que prisões não podiam ser depósitos humanos. Por isso, fortalecemos a carreira de agente penitenciário, que passou de apenas 92 servidores efetivos em 2003 para quase 3 mil em 2010, todos com formação específica na Escola Penitenciária, criada naquele período. Tais medidas permitiram que as polícias retornassem às suas missões essenciais: segurança da população e investigação criminal.
Investimos em novos modelos de gestão. Uma das medidas mais importantes foi o fim do envio dos chamados “malotes” para os presídios. Ao assumir o dever do Estado de prover os insumos básicos ao dia a dia dos reclusos, pusemos um ponto final numa prática que, na maioria absoluta dos casos, garante fluxo de armas, celulares e drogas, entre outros, para as cadeias.
Também avançamos na ressocialização. À época, o Espírito Santo foi apontado pelo Ministério da Educação como o Estado com maior percentual de presos em sala de aula. Mais de 1.300 internos trabalhavam em frentes organizadas em 11 unidades, com apoio de quase 90 empresas capixabas parceiras. Criamos ainda a Unidade de Saúde Prisional, oferecendo atendimento médico, odontológico e estrutura para tratar doenças como a tuberculose.
Com essas e outras medidas, o sistema prisional capixaba deixou de ser sinônimo de abandono para se tornar referência de investimento, gestão e dignidade. Trata-se de um case que mostra que o sistema prisional é peça importante para a questão da segurança pública, e que pode ser objeto de transformações efetivas.
Mas esse é um problema que não deve e não pode ser enfrentado isoladamente, por esforço único de um ente federado. O descontrole da criminalidade de que o País é vítima exige uma concertação interinstitucional, com medidas efetivas no âmbito da segurança pública.
Precisamos seguir nessa área o mesmo caminho trilhado no pós-redemocratização em setores prioritários para a nação. Nesse período, a saúde ganhou o SUS; a educação, o Fundef/Fundeb; a assistência social, o SUAS; entre outros. Mas o enfrentamento eficaz da criminalidade passou ao largo da agenda das políticas públicas prioritárias.
Nessa direção, é preciso que, juntamente com a sociedade civil, o Executivo, Legislativo e Judiciário, (incluindo o Ministério Público e a Defensoria) se articulem para formular e, com urgência, implementar uma ampla política nacional de segurança pública.
Devemos ter clareza de que é possível enfrentar concretamente esse descalabro, como bem mostram experiências internacionais. Para isso, articuladamente, cada instância de governo, poderes e instituições deve assumir suas responsabilidades. Por exemplo, no desmantelamento do crime organizado, é decisivo o controle do fluxo de dinheiro, o que só se faz com envolvimento efetivo do governo central.
Tudo o que menos necessitamos são omissões e pequenas pirotecnias pós-fatos graves, atitudes que só alimentam a cadeia criminosa. Importante lembrar, ainda, que os debates que movimentarão o processo eleitoral de 2026 também se colocam como uma oportunidade ímpar para avançarmos nas formulações acerca de uma situação emergencial para o país.
Não há soluções fáceis para situações complexas, mas sempre deve haver disposição republicana para desatar os nós que nos mantêm no atraso civilizacional. O Brasil encontra-se em um momento definitivo para os enfrentamentos da segurança pública; não podemos, mais uma vez, ignorar a demanda de atualização da legislação criminal e das estruturas encarregadas de sua aplicação.
Paulo Hartung é ex-governador do Espírito Santo.