Damián Scokin está rindo à toa. 

Nos últimos anos, o CEO da Despegar — a dona da marca Decolar no Brasil — foi uma das vozes mais críticas ao modelo de negócios da 123 Milhas, que sempre afirmou não ser sustentável no longo prazo.

boopo damian scokinAgora, com a crise da companhia, que entrou em recuperação judicial na semana passada com uma dívida de R$ 2,3 bilhões, a Decolar espera ser uma das principais beneficiárias do vácuo deixado pela concorrente. 

“Nossas vendas das últimas duas semanas já foram muito mais altas que as do começo do mês. E acho que foi por conta dessa crise da 123 Milhas,” Damián disse ao Brazil Journal. 

O executivo disse que não entende como as autoridades brasileiras e alguns participantes do mercado toleraram essa situação por tanto tempo. “Isso era um esquema Ponzi. Aqui, no Uruguai, na China, ou em qualquer lugar do mundo,” disse ele. 

Nesta conversa, Damián também fala da retomada do mercado de turismo e dos planos da Decolar de começar a abrir lojas físicas com sua marca.

Como você está vendo a dinâmica do mercado de turismo hoje? 

O panorama geral da América Latina, já que a gente opera em toda a região, é que os níveis de passageiros já estão perto do pré-pandemia. Mas tem muita diferença entre países e entre viagens domésticas e internacionais. O Brasil, por exemplo, tem mais passageiros que o pré-pandemia no doméstico. Mas se você olhar o internacional, o País ainda não recuperou a quantidade de passageiros porque há muitos voos que não foram repostos ainda. 

O México está muito mais recuperado que o Brasil. A Argentina está mais para atrás, e o Chile está em linha. Então, são processos de recuperação diferentes. Mas ainda acho que tem espaço para recuperar mais. 

Como essa dinâmica tem se refletido nos números da Decolar? Como foram os resultados do segundo tri de vocês, por exemplo? 

Nosso segundo tri foi o quinto trimestre consecutivo de rentabilidade. A companhia vem com um nível de rentabilidade sustentável e crescente nos últimos cinco trimestres. Em particular neste trimestre, no agregado, tivemos uma receita recorde. A Decolar nunca na história teve uma receita tão grande num trimestre, e um nível de EBITDA próximo aos US$ 30 milhões. Se você compara isso com o trimestre anterior, a Decolar cresce 16% em bookings na América Latina e uns 183% em rentabilidade. 

Mas se você olhar o Brasil em particular, a Decolar cresceu mais ainda, cerca de 39% ano contra ano. O Brasil está crescendo muito. Crescendo mais que o resto da empresa. A presença da Decolar no Brasil é recorde e estamos extremamente contentes com o nosso desempenho no Brasil. 

O segundo tri foi muito bom, e o terceiro está ainda melhor.

Esse crescimento no Brasil está vindo de ganho de market share ou mais do crescimento do mercado?

Eu diria que ele está vindo um terço do crescimento do mercado, que segue crescendo bastante, e dois terços de ganhos de market share.

Quais as metas de vocês para este ano?

Temos uma ambição de crescer 20% na comparação com o ano passado, e ter um lucro em torno dos US$ 100 milhões, que seria o mais alto de toda a história da Decolar. E nesse momento temos US$ 250 milhões de caixa líquido.

Recentemente, houve a notícia da recuperação judicial da 123 Milhas. Qual sua avaliação sobre o que aconteceu?

É um caso que não deixa de surpreender a mim e a toda a equipe da Decolar. O Brasil é um país sério, com autoridades em geral muito protetoras do consumidor. E quando você fala de algumas práticas de empresas que vendiam pacotes para Orlando, por exemplo, por R$ 700, R$ 800, e que não emitiam os pacotes e diziam que em dois anos você ia conseguir voar para Orlando por R$ 700, ninguém que entende de turismo acha que isso é correto. 

Eu fico tremendamente surpreso que autoridades brasileiras e alguns participantes da indústria toleraram isso por dois, três anos. Isso era um esquema Ponzi – aqui, no Uruguai, na China, em qualquer lugar do mundo.

E eu fico realmente surpreso como o mercado brasileiro tolerou isso por tantos anos. A Decolar foi severamente prejudicada. Um cara que vendia coisas que não ia entregar, podia gastar uma grana com marketing, por exemplo. Você vai em Guarulhos e o aeroporto está lotado de propagandas deles. Se você vende coisas que não vai entregar é muito fácil fazer isso.  

Todo mundo do setor sabia que em algum momento essa empresa ia explodir?

Com certeza. Você conhece algum mercado em que a pessoa venda o serviço por um quarto do preço e você não tem certeza da data que vai receber, mas eles dizem que vai acontecer dois anos para frente? Eu não conheço nenhum mercado. E isso aconteceu por dois, três anos!

A Decolar sempre foi uma das empresas que mais criticavam a 123 Milhas, inclusive para as companhias aéreas e hotéis. Vocês sempre tiveram esse posicionamento de alertar o mercado?

A gente sempre foi muito crítico por muito tempo. No fórum Panrotas de 2022, por exemplo, eu falei que as companhias aéreas tinham que organizar o mercado. Não só por essa prática de vender produtos sem data de emissão, mas também pela loucura do mercado de milhas aéreas. Há reguladores e alguns participantes do mercado de turismo que fizeram muito dano ao mercado. 

Por que você acha que as companhias aéreas e hotéis foram levando essa situação e deixaram ela chegar nesse tamanho?

Eu não sei. Honestamente não sei. Talvez porque elas se deixaram ficar tentadas pelos ganhos no curto prazo. Mas qualquer pessoa que tenha experiência nas práticas do mercado de turismo sabe que isso é um golpe. Ninguém pode ficar surpreso. Se alguém do setor reagir com: ‘ah, como isso aconteceu?’, vai ser uma piada. Todo mundo sabia. 

A ação da CVC subiu muito nos últimos dias com os investidores precificando que ela pode se beneficiar da crise da 123 Milhas. Dado que o cliente de vocês é mais jovem e digital, enquanto o da CVC é um público mais velho e que precisa de assistência, você acha que a Decolar pode acabar capturando até mais desse share do que a CVC? 

Nós já estamos tendo uma resposta extremamente positiva tanto no tráfego do site quanto nas vendas dessas últimas semanas. Porque as pessoas valorizam a seriedade de 20 anos se comportando de forma séria, e a solidez financeira que temos. É como um fly to quality: ‘quero viajar, mas quero ter certeza que vamos comprar algo que existe’.

Eu respeito todos os nossos concorrentes. A CVC é uma empresa com uma trajetória muito grande e seguramente também vai se beneficiar. Mas acho que a Decolar está fazendo as coisas corretamente para capturar muito essa oportunidade que aparece no mercado brasileiro.

E vocês já estão vendo isso nos números? 

As vendas nas últimas duas semanas foram muito mais altas que no começo do mês. E acho que foi por conta dessa crise da 123 Milhas.

E vocês estão fazendo ações proativas para capturar esse cliente? Vão investir mais em marketing, fazer mais campanhas para tentar capturar esse market share que está solto no mercado?

Sempre investimos de forma sustentável no mercado brasileiro e achamos que esse é o momento em que todo esse trabalho de muitos anos, não só de marketing e campanhas, mas de fazer as coisas bem, de responder aos clientes, vai se pagar. O resultado vem sozinho nesse contexto.

Há alguns meses, vocês chegaram a negociar uma fusão com a CVC, mas as conversas esfriaram depois que a ação da CVC despencou e eles tiveram que focar na renegociação das dívidas. Essas conversas estão mortas ou vocês ainda estão conversando?

Você entende que não posso falar de eventuais conversas. A Decolar fala com um monte de empresas na América Latina, e não seria sério da nossa parte falar de conversas passadas ou atuais. 

Mas qual seria o racional de uma fusão com a CVC? Seria pelas lojas físicas?

O que posso falar é de outras fusões que já fizemos no passado. Compramos a Viajes Falabella, a Viajanet. Temos um track record de várias compras nos últimos anos e todas hoje ganham mais dinheiro e vendem mais do que quando compramos. Todas. No total, compramos cinco empresas desde que assumi como CEO, e três delas no Brasil. 

Então, aquisições é uma estratégia que vai continuar fazendo sentido para vocês?

Sempre falamos que o crescimento inorgânico é uma oportunidade para a Decolar porque a potência da plataforma tecnológica facilita muito as integrações de todas as empresas que vamos somando ao grupo. E nossa capacidade de centralizar e baixar custos é enorme. Isso faz com que muito rapidamente as empresas que compramos cresçam e reduzam seus custos. 

Vocês estão com planos de começar a abrir lojas físicas com a marca Decolar, e devem abrir 10 no Brasil já este ano e 5 na Argentina. Por que decidiram investir em lojas físicas? Qual o racional?

Vemos que o mercado brasileiro tem um componente offline que nós podemos capturar e rentabilizar com lojas que não sejam tradicionais. Lojas com uma plataforma tecnológica muito forte que fazem com que a experiência de compra seja muito melhor e o nível de serviço muito superior ao que se tem tradicionalmente. Não vão ser lojas tradicionais. A experiência que temos com as lojas físicas da Viajes Falabella mostram que o Grupo Decolar pode operar essas lojas com muita sustentabilidade. 

Vai ter um perfil diferente das lojas da CVC então?

Sim, acredito que vai ter um perfil diferente de tudo que tem no mercado. Vão ser lojas muito mais inovadoras e tecnológicas. 

A ideia de vocês é abrir essas lojas como franquias ou lojas próprias?

Vai ser uma mescla.

Mas essas 15 primeiras devem ser próprias para testar?

Já devemos ter um mix. 

E qual o plano de médio/longo prazo de vocês. Pretendem construir uma rede de lojas do tamanho da CVC, por exemplo, que tem mais de mil lojas?

Não. Não queremos construir 1,2 mil lojas. Queremos nos concentrar nos pontos chaves, onde podemos agregar valor e onde há uma densidade de clientes e uma demanda muito grande. E vamos fazer gradualmente na medida em que nos assegurarmos do valor que as lojas físicas agregam à nossa operação. Dessa forma, temos três avenidas de crescimento: as lojas físicas, a operação online, que ainda tem muito espaço para crescer, e as aquisições. É uma empresa com muitas formas de crescer.

Mas a visão de vocês para as lojas físicas é que elas vão trazer mais vendas? Ou é mais para fidelizar o consumidor?

Achamos que vai trazer mais vendas. Vamos seguir isso muito de perto, mas onde já temos lojas físicas e site — em países como Chile, Peru, Colômbia, México, onde temos umas 150 lojas — sempre as lojas físicas agregam nas vendas.