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Quintella também é o único brasileiro no board da International Union of Railways (UIC), que vai se reunir em Paris daqui a um mês para discutir o futuro da ferrovia no planeta. A UIC representa mais de 200 empresas que juntas operam mais de 1 milhão de quilômetros ferrovias e transportam 30 bilhões de passageiros e 12 bilhões de toneladas de carga por ano em todo o mundo.
No Brasil, as ferrovias têm um passado glorioso e um futuro ainda incerto. Em 1930, quando asfaltou sua primeira rodovia — a Washington Luiz, que liga o Rio a Petrópolis — o Brasil já operava 30 mil quilômetros de ferrovias. Hoje temos quase 2 milhões de quilômetros de rodovia no País, dos quais 250 mil quilômetros de asfalto — e menos de 10 mil quilômetros de ferrovias operacionais.
Na semana passada, Quintella conversou com o Brazil Journal.
A greve dos caminhoneiros fez a sociedade lembrar que o Brasil ignora as ferrovias. Como aproveitar este momento?
É claro que o Brasil precisa de mais ferrovias, mas isso não pode ser uma resposta intempestiva a um evento, como esse da greve dos caminheiros.
Usar a greve para propor uma resposta intempestiva e imediatista sobre ferrovias é voltar aos erros do passado, alguns deles bem recentes. Vou te dar alguns exemplos: em 2007, quando tivemos o acidente da TAM em Congonhas e os aeroportos brasileiros pareciam que não iam mais dar conta do recado, saímos querendo fazer um trem de alta velocidade entre o Rio e São Paulo, além de construir e ampliar os aeroportos.
Outro movimento intempestivo foi quando o governo, por conta da crise do subprime de 2008, criou o PSI (Programa de Sustentação do Investimento), que financiava 100% de caminhões e trens com taxas fixas em torno 2% e que foi à época, festejadíssimo pelos empresários brasileiros, como muito bem apontado pelo Marcos Lisboa, o Samuel Pessoa e o Mansueto Almeida nos seus artigos sobre “a República da Meia-Entrada’’. O trem de alta velocidade não partiu, os aeroportos não conseguem decolar, e a farra do PSI — que quase quebrou o BNDES e o País — não fez com que as ferrovias avançassem e é o verdadeiro responsável por muitas das dificuldades que os caminhoneiros atravessam.
O que precisa ser feito então para termos mais equilíbrio entre os modais de transporte?
O Brasil precisa de mais planejamento. Só isso. Temos que retomar a nossa capacidade de planejar, de ter bons projetos dentro de uma visão holística e combinada de logística e infraestrutura de transportes, tanto de carga como de passageiros. Se planejássemos mais, teríamos mais ferrovias, mais cabotagem, melhores rodovias, mais produção, mais consumo, coletas, transferências e distribuições mais eficientes, menos trânsito, menos acidentes, mais respeito ao meio ambiente, e até mesmo caminhoneiros mais bem remunerados. Não podemos também esquecer que o mundo vem desenvolvendo novas tecnologias de transporte, como o Hyperloop, que precisam ser conhecidas, discutidas e inseridas neste planejamento. Temos que planejar mais e improvisar menos.
Quanto custa ao Brasil não ter ferrovia?
É caro. Custa US$ 100 bilhões por ano. A logística custa 15% do PIB do Brasil, contra 8% nos EUA. A média mundial é 10%. Ou seja, o Brasil desperdiça algo como 5% do PIB [US$ 2 trilhões x 5%] com a ineficiência logística — em grande parte por privilegiar modos de transporte menos eficientes. E está claro que não é o caminhoneiro quem fica com este desperdício. Quem fica com ele é a camada de ozônio. Apenas para ilustrar, com este valor desperdiçado poderíamos construir a cada ano 37.000 quilômetros de ferrovias de carga com seus vagões e locomotivas, ou construir 7.000 quilômetros de Trens Intercidades para passageiros que andariam a 200 km/h. Perceba como o País tem motivos de sobra para começar a converter essa ineficiência em estímulo para encontrar soluções mais racionais para nossa matriz de transporte.
Por que o Brasil insiste em rodovias?
Porque é o que País sabe — ou já soube — fazer. Recentemente, nem isso conseguimos mais fazer, vide a situação caótica da BR 163 e de outras rodovias.
Quando é que o Brasil desistiu das ferrovias?
Foi logo depois da Segunda Guerra Mundial. A cultura do automóvel tomou conta do mundo, muito influenciado pelos Estados Unidos. Houve a influência do “American way of life”. Nosso apoio aos Estados Unidos durante a Segunda Guerra nos permitiu ter aqui uma indústria de base, a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), para termos aço para produzir carros. Houve também outros incentivos, como o financiamento. À época, Banco Mundial, por exemplo, só financiava a construção de novas rodovias se em contrapartida o governo brasileiro erradicasse trechos ferroviários existentes. Repare que este fenômeno não ocorreu em nenhum outros país do mundo. Todos eles impulsionaram os dois modos de transportes. Cabe destacar aqui a Alemanha do pós-guerra, que é conhecida por ter excelentes rodovias e ferrovias além de possuir uma das melhores indústrias ferroviária e automobilística do mundo. Nenhum país pode depender de um único modo de transporte, seja ele qual for.
O empresário geralmente reclama do custo logístico, mas o assunto ferrovias — ou opções de transportes — é muito pouco discutido. Por quê?
Porque as pessoas de modo geral não percebem que este desperdício é seu. Que é o cidadão que desperdiça o seu salário quando ele paga 5% a mais, por exemplo, do que poderia pagar pelo rolo de papel higiênico se o País tivesse uma matriz de transporte mais equilibrada. Muitas vezes imaginam que este problema é da indústria, da agricultura, do comércio, esquecendo que eles repassam o custo para os preços dos seus produtos.
Como são as discussões com o Governo?
Brasília não deixa de ser um grande símbolo do abandono gradual das ferrovias no Brasil. Eu brinco que Brasilia é o lugar mais difícil do mundo para discutir ferrovia, já que é a única capital importante do planeta que não tem uma monumental Estação Ferroviária. Brasilia foi construída como uma ode ao automóvel, teve o seu plano urbanístico inspirado num avião, e a sua principal esquina é uma estação rodoviária. (risos) Mas brincadeira à parte, o investimento público em transporte no Brasil alcançou 2% do PIB em meados dos anos 1970, e desde então só caiu. Em 2017, foi de apenas 0,16% do PIB. Já que o Governo não tem capacidade para investir, ele deveria concentrar sua agenda de curto e médio prazo em duas frentes para atrair capital privado para os projetos, especialmente o capital estrangeiro. Primeiro, planejar um programa robusto de ações e investimentos que faça com que o Brasil reduza em 30% os seus custos logísticos, para que possamos alcançar a média mundial. Segundo, concentrar esforços para que o País possa desenvolver ações e regulamentações, ou desregulamentações se for o caso, que possam proporcionar bancabilidade aos projetos que estão nas prateleiras e que precisam de investidores privados.
Quem deveria coordenar estas ações?
O Brasil deveria ter uma visão de Estado para o relatório “Doing Business” do Banco Mundial, que todo ano analisa as leis e regulações que facilitam ou dificultam as atividades das empresas em 190 países. O Brasil está em 139o lugar no que diz respeito às dificuldades relacionadas à sua competitividade internacional, onde estão as questões logística e de transportes. O investidor de infraestrutura precisa de previsibilidade, e esta deve ser uma discussão mais técnica do que política, então acho imprescindível a participação conjunta do BNDES e do TCU. O Banco, porque tem a visão da bancabilidade de projetos estruturantes; e o TCU, porque pode dar uma visão ex-ante da locação de recursos e riscos dentro da lei, sem cair na tentação da “meia entrada”. A UIC, que é uma entidade sem fins lucrativos, pode colaborar no que for preciso.
Como a UIC pode ajudar o País a avançar em ferrovias?
A UIC tem muito a colaborar. Desde a sua fundação, em 1922, a UIC acumula uma quantidade enorme de conhecimento, que foi transferido para milhares de padrões operacionais, de segurança e outros, mas penso que a solução dos nossos problemas está aqui mesmo no Brasil, e aí eu volto ao tema do planejamento.