BOSTON — Blockchain, substantivo masculino: tecnologia da qual todo mundo já ouviu falar, mas não sabe bem como funciona.

Em 2015, a Goldman Sachs já afirmava que o blockchain — a tecnologia por trás do bitcoin e de outras ‘criptomoedas’ — “could disrupt everything”.  Em seu primeiro grande estudo sobre o assunto, o Fed concluiu que a tecnologia tem o potencial de mudar a estrutura do mercado financeiro e, num cenário extremo, tornar os bancos obsoletos. Até o antes-cético e agora-convertido Bill Gates está desenvolvendo, por meio de sua fundação, um meio de pagamento baseado em blockchain para países subdesenvolvidos.

Mas o que é afinal de contas o blockchain — e por que ele vai mudar o mundo?

Não é possível entender de fato a tecnologia sem primeiro estudar o segmento para o qual ela surgiu: as criptomoedas, que têm no bitcoin o seu primeiro e mais famoso exemplar.

A história do bitcoin começa em 2008, quando um tal de Satoshi Nakamoto — o nome é um pseudônimo, e sua real identidade permanece um mistério — se propôs a criar uma moeda digital que não tivesse uma instituição centralizadora por trás. (Sim, libertários, um mundo sem Banco Central!)

Para isso, era preciso garantir que uma moeda não fosse gasta mais de uma vez, ou seja, que seu detentor não conseguisse fazer um simples ‘copy+paste’ como faria com outro arquivo qualquer.

A ideia de Nakamoto se baseava em três sacadas:

(1) dar uma cópia do histórico de transações realizadas desde o início da moeda digital para todos os computadores disponíveis para processá-la;

(2) para validar cada nova transação, a criptografia exige duas chaves: uma pública (divulgada junto da ordem da transação) e outra privada (sempre mantida em segredo), confirmando a identidade do usuário sem expô-lo ao risco de roubo de suas moedas; e

(3) processar as transações em blocos: cada novo bloco é processado e anexado à lista original como mais um elo da cadeia (daí o nome ‘blockchain’). Por fim, todos os computadores, trabalhando de forma coordenada mas independente, processam as transações e batem os resultados entre si, validando por consenso o novo bloco de transações antes de anexá-lo ao blockchain antigo.

A melhor analogia para entender este processo é aquela brincadeira em que cada pessoa recita uma lista de palavras e, no final, adiciona uma nova, até que um dos participantes se esqueça (ou erre) uma das palavras. Na tecnologia, esse ‘erro’ pode ser causado por uma falha de processamento ou tentativa de fraude, e neste caso os computadores decidem quem está certo escolhendo o bloco processado pela maioria. A estatística vence.

O bitcoin foi o primeiro ‘produto’ criado com o blockchain. Mas foi mais um acidente do que um plano genial.

No início, só uma tribo de ‘cypherpunks’ (cyberpunks envolvidos em criptografia) ficava trocando bitcoin num mailing list de nerds, escondidos nas entranhas da internet. Sem saber, aquela galera libertária, leitores de Ayn Rand, estava tropeçando no que será uma revolução nos meios de pagamento.

Ninguém previa o sucesso avassalador da moeda digital. A primeira operação envolvendo bitcoins foi em 2010, quando um sujeito comprou duas pizzas no Papa Johns e pagou os US$ 25 para outro cara usando 10.000 bitcoins (hoje, o equivalente a US$ 24 milhões).

Já outro membro da tribo foi lembrar de seus 7.500 bitcoins quando descobriu pelo jornal que eles já valiam mais de US$ 7 milhões; só que o coitado esqueceu a chave da sua carteira de bitcoins no HD de um computador que tinha ido pro lixo meses antes. Desesperado, ele chegou a contratar uma escavadeira para cavar pelo lixão da cidade, mas consta que não conseguiu recuperar seu tesouro.

Com o tempo, sites para compra e venda de bitcoin foram montados, evoluindo para verdadeiras bolsas virtuais — já há pelo menos 157. A moeda logo se estabeleceu como uma forma inteligente de fazer câmbio, comprando-se bitcoins em um país e revendendo-os em outro. Em pouco tempo, outras criptomoedas – como o ether, o ripple e o litecoin – surgiriam, e o interesse na tecnologia explodiu.

Para além de sua complexidade técnica – os conceitos de criptografia envolvidos sequer existiam 30 anos atrás – a grande inovação que o blockchain trouxe foi a ideia de que um consenso entre os computadores que processam as transações pode tornar obsoletos os intermediários financeiros. Em outras palavras: a lógica por trás do blockchain acaba por subverter a própria natureza do sistema financeiro. Os bancos tremem.

Para ilustrar o que se quer dizer com isso, consideremos o caminho tortuoso que uma transação de cartão de débito percorre até ser executada, e como esse processo é diferente quando se usa uma moeda digital.

No sistema atual, o comprador possui um cartão emitido pelo seu banco em contrato com alguma bandeira (Visa, Mastercard ou Amex). O vendedor, por sua vez, possui uma maquininha alugada ou vendida por uma empresa adquirente (digamos, Cielo ou Rede), que é capaz de interpretar os dados do cartão e se comunicar com as bandeiras de maneira segura para transferir os fundos do comprador ao seu próprio banco. Ao passar o cartão e confirmar a operação na maquininha, o adquirente informa a transação para a bandeira, que checa os fundos no banco emissor e autoriza a remessa da grana para a conta do vendedor no seu banco, que cai no dia útil seguinte (lembre-se: a operação é no cartão de débito).

Entre comprador e vendedor existem, portanto, quatro intermediários: o banco emissor, a empresa adquirente, a rede de pagamentos e o banco receptor, que são recompensados a partir de taxas variadas recolhidas ao longo da transação (compiladas na famosa ‘merchant discount rate’, ou MDR, além de taxas bancárias e os custos com a maquininha).

No caso de uma moeda digital, nada disso é necessário. Usando um programa que permite a utilização de moedas digitais, o comprador remete dinheiro diretamente ao vendedor, e a transação é submetida ao processo de consenso público do blockchain que descrevi acima. Os recursos ficam disponíveis para o vendedor em minutos, e os custos de transação são mínimos – podendo inclusive ser zero em algumas moedas digitais.

O pagamento por moedas digitais também acaba sendo mais seguro que o sistema atual. Se, em um sistema centralizado, quanto maior o número de usuários, mais instável fica o processamento, o inverso acontece com o blockchain: como sua arquitetura é distribuída, quanto maior o número de participantes, mais robusto é o sistema. Esta ‘antifragilidade’ das moedas digitais cria incentivos para a rede se tornar rapidamente global.

Mas o futuro do blockchain vai muito além das moedas digitais, e deve revolucionar quase toda atividade humana imaginável.

O blockchain iniciou uma revolução cujo impacto pode ser similar ao que o mundo viu com a introdução do protocolo TCP/IP, criado para permitir o envio de e-mails, mas que acabou criando as bases da World Wide Web.

Pela primeira vez, será possível criar um registro histórico de tudo ao nosso redor: um registro transparente, altamente eficiente, e matematicamente impossível de ser adulterado.

Por exemplo, um contrato registrado no blockchain seria imune a fraudes, e poderia inclusive ser programado para ser executado automaticamente quando as condições descritas em suas cláusulas acontecessem. Isso não é ficção: o ethereum, o blockchain por trás do ether (a segunda mais popular moeda digital em circulação), já torna isso possível – são os chamados “smart contracts”.

Na saúde, registros médicos de pacientes poderiam ser estocados no blockchain, garantindo que nenhuma informação sobre a saúde daquela pessoa se perca e, de quebra, permitindo o acesso de pesquisadores a seus dados com a garantia absoluta de privacidade do paciente.

Na alimentação, animais podem ser acompanhados e registrados continuamente enquanto passam por toda a cadeia produtiva — do pasto ao prato, passando pelo frigorífico e pelo supermercado — permitindo que focos de contaminação sejam descobertos e datas de validade, continuamente checadas.

Na burocracia estatal, registros de propriedade e documentos poderão estar numa lista descentralizada e 100% transparente. Pense num mundo sem RGI, reconhecimento de firma, procuração por instrumento público, etc…  Na hora de escolher seus representantes, o eleitor poderá votar de casa, usando o blockchain, num sistema muito mais seguro do que as máquinas existentes hoje, impossibilitando fraudes e quase eliminando o custo de uma eleição.

Em abril, o Japão passou a aceitar bitcoin e outras moedas digitais como meio de pagamento, e as empresas do país estão pedindo guidance sobre como adaptar sua contabilidade. Uma série de companhias em todo mundo já aceitam bitcoin como forma de pagamento.

Essa semana, a Daimler levantou € 100 milhões no mercado de dívida usando, pela primeira vez, o blockchain como plataforma de execução da transação. Normalmente, uma transação como esta levaria 10 semanas para ser executada, e a montadora alemã teria que contratar bancos de investimento para conduzir a operação.

O blockchain digitalizou todas as etapas — originação, distribuição, alocação e execução do contrato de empréstimo, até a confirmação de pagamento de amortização e juros — e eliminou a necessidade de um banco intermediário.

A revolução do blockchain é tão inevitável e abrangente quanto o ‘disruption’ que o advento do email causou à máquina de fax. Só sobreviverão a este processo as empresas que abraçarem a nova tecnologia, entendendo como ela muda seu modelo de negócio e se adaptando a isso.  E é melhor ter pressa.